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Bacteriófagos são alternativa no combate às bactérias multirresistentes

11 de Março de 2019 às 12:59

Texto: Guilherme Profeta

Foto: Paulo Ribeiro

Acaba de começar o turno da noite no laboratório do Instituto Nacional da Ciência da Saúde (INCS), no hospital Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba. Um nível abaixo do solo, apenas três funcionários ocupam-se silenciosamente de seus afazeres. É possível ouvir o leve chiado das lâmpadas fluorescentes e o balançar constante de um agitador preenchido de tubos de ensaio. Na sala ao lado, sobre a bancada da Microbiologia, aguarda uma amostra de secreção traqueal colhida de uma paciente da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), de 59 anos, vítima do que tudo indica ser uma pneumonia bacteriana.

uniso O professor Victor Balcão manuseia bactérias no PhageLab, da Uniso

A amostra é transferida para uma placa de Petri e segue para uma estufa. No dia seguinte, o crescimento da colônia de bactérias já é visível a olho nu. Começa então uma série de testes bioquímicos, que vão direcionando a identificação da espécie, até que seja possível saber, finalmente, quem é o culpado.

A bactéria identificada é uma velha conhecida do pessoal do laboratório: a Pseudomonas aeruginosa. Segundo a biomédica Maria Inês Migliorini Vernaglia, na época a coordenadora técnica do INCS, considerando-se as culturas do hospital, as Pseudomonas representam de 10 a 20% dos microrganismos identificados. Ela é realmente muito comum.

“De modo geral, a Pseudomonas não representa um risco para pessoas num bom estado de saúde, como acontece, na verdade, com a maior parte das bactérias. Ela é problemática, em primeiro lugar, para pacientes hospitalizados, principalmente nas UTIs, que normalmente estão com as vias respiratórias expostas”, diz ela.

De fato, pesquisas apontam que, nas UTIs brasileiras, a bactéria Pseudomonas aeruginosa é o patógeno que mais causa pneumonias nosocomiais, como são chamadas as infecções adquiridas em ambiente hospitalar, em que os pacientes, já com os sistemas imunológicos comprometidos (como idosos), estão mais sujeitos a infecções. Isso se dá devido à resistência da Pseudomonas aeruginosa a um grande número de antibióticos e antissépticos. A pneumonia, uma moléstia pulmonar que afeta os alvéolos e os tecidos circundantes, é uma infecção nosocomial recorrente, configurando a sexta causa mais frequente de morte, além de ser, dentre as infecções mortais, a que mais normalmente se adquire num contexto hospitalar.

“O verdadeiro problema”, continua Vernaglia, “ocorre quando a Pseudomonas adquire resistência aos antibióticos que temos disponíveis.”

Uma vez identificada a bactéria, o próximo teste serve justamente para definir a quais antibióticos ela é sensível. Numa nova placa de Petri, coberta por uma cultura da Pseudomonas, são inoculados os diversos antibióticos disponíveis, para identificar quais são capazes de barrar o avanço da colônia. As bactérias sensíveis costumam reagir a várias das drogas; já as multirresistentes, ou MDR (multi-drug resistant, na sigla em inglês), não apresentam qualquer regressão no volume de suas colônias.

No caso da cultura em questão, a bactéria é sensível a apenas dois dos antibióticos, o que significa que se trata de um organismo multirresistente. No caso da paciente em questão, a opção é usar um dos dois antibióticos químicos aos quais foi comprovada a sensibilidade. Porém, caso o organismo dela não reaja a nenhum dos tratamentos, então os médicos estarão sem outras opções.

Em todo o mundo a Pseudomonas aeruginosa é uma das bactérias que vem ganhando resistência aos tratamentos disponíveis, um fenômeno assustador que, infelizmente, não se restringe a essa bactéria específica. De certa forma, pela maneira que fazemos uso de antibióticos, nós estamos propiciando o surgimento de superbactérias, e esse não é um fenômeno novo.

O ano era 1928

O bacteriologista escocês Alexander Fleming, ao sair de férias, havia esquecido em seu laboratório no hospital St. Mary’s, em Londres, algumas culturas bacterianas que mantinha em placas de vidro. Quando retornou ao trabalho, percebeu que uma delas estava mofada. Em vez de simplesmente considerá-la arruinada e jogá-la fora imediatamente, ele reparou que, por algum motivo, as colônias de bactérias não eram capazes de avançar sobre as áreas cobertas pelo mofo. Posteriormente, o mofo foi identificado como um fungo do gênero Penicillium, que produzia uma substância antibiótica capaz de impedir a proliferação das bactérias nas placas de Petri. Foi assim, por acaso, que foi descoberta a penicilina.

A penicilina revolucionou o tratamento de infecções, além de render a Fleming e colegas um cobiçado prêmio Nobel em 1945. O índice de mortalidade relacionada a infecções bacterianas, desde sua descoberta, foi reduzido drasticamente. Com o avanço da medicina, outros fármacos antimicrobianos foram desenvolvidos, aumentando o arsenal do homem na luta contra agentes infecciosos e salvando milhões de vidas. Contudo, nada vem de graça; seu uso indiscriminado tem um grave efeito colateral.

As bactérias têm um ciclo de vida muito rápido. A Pseudomonas aeruginosa, por exemplo, é capaz de se reproduzir em cerca de 45 minutos numa situação ideal de proliferação – o que quer dizer que, num período de apenas 12 horas, uma única bactéria pode se tornar uma colônia de mais de cem mil indivíduos. Como ocorre com todos os seres vivos, eventualmente alguns indivíduos sofrerão mutações, e algumas dessas mutações podem torná-los particularmente resistentes a certos antibióticos, fazendo com que sobrevivam e se reproduzam. Devido ao ciclo de vida das bactérias, isso acontece razoavelmente rápido. A próxima geração, naturalmente selecionada, manterá os genes que lhes conferem essa proteção, tornando-se assim resistente àquele antibiótico. Assim, é preciso trocar de fármaco para conseguir o mesmo efeito bactericida. Mas o processo se repete: novas gerações de bactérias exigem novos antibióticos, mas, mais uma vez, o uso indiscriminado faz com que o ambiente selecione bactérias cada vez mais fortes e mais agressivas. Com o tráfego mundial de pessoas, as bactérias viajam junto, replicando genes resistentes em escala global.

Nos Estados Unidos, por exemplo, foi isolada recentemente uma cepa de Escherichia coli resistente à colistina, o antibiótico utilizado como a última arma contra essas bactérias multirresistentes. O gene mcr-1 portado por essa bactéria, que lhe confere a resistência, havia sido isolado pela primeira vez na China, depois na Europa e finalmente na América do Norte. Caso essa bactéria se reproduza e passe esse gene adiante, teremos uma nova geração de bactérias resistentes ao que temos de mais eficiente no momento. E é exatamente por isso que os antibióticos devem ser prescritos com parcimônia – no Brasil, desde 2011, há um controle mais restrito da venda de antimicrobianos nas farmácias, mas, mesmo assim, é preciso pensar em maneiras de combater as bactérias usando menos antibióticos. Mas como?

Meados de 2016

No PhageLab, o Laboratório de Biofilmes e Bacteriófagos da Uniso, o professor doutor Victor Balcão, português residente no Brasil desde 2014, acaba de receber uma encomenda vinda da região da Baixa Saxônia, na Alemanha – no pacote, uma etiqueta alertando: material biológico.

Desde que foi cuidadosamente despachada da cidade de Brunsvique, depois de uma série de entraves burocráticos, essa encomenda viajou mais de dez mil quilômetros até chegar às instalações do PhageLab, cujo objetivo é o isolamento de bacteriófagos a partir de fontes ambientais, visando o desenvolvimento de produtos (bio)farmacêuticos inovadores.

Com rigor metodológico, contando com a proteção de uma capela de segurança biológica ele e os demais pesquisadores manuseiam dois conjuntos de ampolas de vidro seladas a vácuo, que acabaram de retirar do pacote. Ambos vieram da Coleção Alemã de Microrganismos e Cultura de Células (em alemão, Deutsche Sammlung Von Mikroorganismen und Zellkulturen) do Instituto Leibniz DSMZ, um dos maiores centros de recursos biológicos em todo o mundo. Em seu interior hermeticamente selado, elas resguardam dois tipos diferentes de pequenas entidades invisíveis a olho nu.

Uma delas, contida nas primeiras ampolas, está classificada com um grau de periculosidade de nível 2 – o que significa perigo biológico moderado. Trata-se de uma cepa patogênica, da mesma bactéria identificada pelo pessoal do laboratório da Santa Casa, tão comum nos hospitais: a bactéria Pseudomonas aeruginosa. Ainda que esse não seja um organismo raro, quando se trata de pesquisas científicas é imprescindível obtê-lo de fontes confiáveis como a

DSMZ, para atestar que se trata de uma cepa pura, e não de uma variedade passível de mutações, como aquelas que seriam encontradas num paciente em tratamento, por exemplo.

No segundo conjunto, identificado como JG004, há um fago – um apelido simpático para bacteriófago, palavra de origem grega que significa “comedor de bactérias”. Os fagos, descobertos entre o fim do século XIX e o começo do século XX, são vírus predadores naturais das bactérias, parasitas intracelulares que infectam única e exclusivamente bactérias específicas. O fago JG004, particularmente, tem em seu cardápio usual um único prato, a Pseudomonas aeruginosa. Assim, não é difícil adivinhar o que está prestes a ser feito.

A terapia fágica – como é chamado o tratamento em que as infecções bacterianas são destruídas pela inoculação de fagos no corpo humano – tem consideráveis vantagens em relação ao uso de antibióticos químicos: os fagos são bastante específicos em predar apenas um tipo de bactéria e, além disso, caso as bactérias sofram mutações que as tornem mais resistentes aos fagos utilizados, o processo de isolar novos fagos é mais simples e mais barato do que desenvolver um novo antibiótico químico. Ainda assim, a terapia fágica é pouquíssimo utilizada como alternativa aos antibióticos químicos convencionais, à exceção de países como a Polônia e a República da Geórgia, em institutos específicos. Porém, poucos estudos clínicos foram conduzidos e aceitos por autoridades sanitárias internacionais. No Brasil, começamos a dar os primeiros passos em pesquisas envolvendo bacteriófagos.

Num futuro próximo, esperançosamente, os resultados obtidos pela pesquisa desenvolvida no PhageLab podem ajudar a mudar esse panorama, beneficiando qualquer paciente com um quadro de infecção pulmonar bacteriana, especialmente se causado pela Pseudomonas aeruginosa.

Teoricamente, uma única partícula bacteriofágica, desde que chegue intacta ao local de infecção nos pulmões, é suficiente para acabar com toda a infecção. Contudo, usar o JG004 (ou outro bacteriófago lítico para Pseudomonas aeruginosa) como arma contra infecções bacterianas não é assim tão simples quanto pode parecer. Os fagos costumam ser totalmente inofensivos a seres humanos, mas, para que possam agir contra as bactérias, precisam ser inoculados no corpo humano de uma forma tal que o nosso próprio sistema imunológico não os confunda com organismos nocivos.

“No caso da pneumonia, as bactérias se alojam nos pulmões, criando um muco espesso que dificulta a respiração. Os fagos precisam ser inalados, cruzando todo o caminho até as vias respiratórias profundas”, explica o professor.

A solução proposta pela pesquisa desenvolvida no PhageLab foi encapsular os fagos no núcleo aquoso de nanovesículas oleosas que, por sua vez, estão dispersas numa emulsão aquosa – um sistema de água-em-óleo-em-água (A/O/A), algo como bolhas dentro de bolhas. São essas “bolhas”, uma vez administradas em pacientes com pneumonia por Pseudomonas aeruginosa, que protegerão os fagos das defesas naturais do corpo humano.

Essas emulsões múltiplas, às quais os fagos foram acrescidos, foram o resultado de duas dissertações de mestrado no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), que foram desenvolvidas sequencialmente. A primeira dissertação trabalhou a estabilização de uma proteína simples, abrindo caminho para que a segunda pudesse estabilizar bacteriófagos completos – os quais são entidades totalmente protéicas.

O processo de nanoencapsulação foi longo e, naturalmente, demandou uma série de testes diversos, incluindo testes de citotoxicidade e genotoxicidade, que determinariam a compatibilidade das emulsões para uso no corpo humano. Além do PhageLab, outros laboratórios foram utilizados, incluindo a estrutura da Uniso no Parque Tecnológico de Sorocaba, as instalações do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano/CNPEM), também em Campinas.

Todos os testes in vitro, até então, foram bem-sucedidos. “A etapa seguinte, naturalmente, seria realizar os mesmos testes in vivo, primeiramente em ratos padronizados. Aplicações em seres humanos estão alguns passos além e muitos outros testes precisariam ser conduzidos antes disso. Há certamente um longo caminho a ser percorrido em pesquisas futuras, mas este é um começo necessário. Pois a nossa realidade está mudando: hordas de bactérias cada vez mais resistentes aos antibióticos nos obrigam a buscar alternativas, de modo que é a própria resistência bacteriana que vai catapultar outros estudos voltados aos bacteriófagos e, especialmente, o desenvolvimento de sistemas bioterapêuticos viáveis”, conclui o professor.

Com base nas seguintes dissertações do Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Universidade de Sorocaba (Uniso), ambas orientadas pelo professor doutor Victor Manuel Cardoso Figueiredo Balcão: “Otimização da metodologia de preparação de emulsões do tipo A/O/A integrando nanogotas lipídicas com núcleo aquoso, para estabilização protéica” (coorientação da professora doutora Marta Maria Duarte Carvalho Vila), de Cássia Antunes Glasser, aprovada em 18 de fevereiro de 2016; e “Pneumophagekill: estabilização estrutural e funcional de partículas bacteriofágicas em emulsões do tipo A/O/A: Sistema bioterapêutico para tratamento de pneumonia bacteriana por nebulização”, de Alessandra Cândida Rios, aprovada em 3 de novembro de 2016. As dissertações estavam vinculadas ao projeto de pesquisa PneumoPhageKill (processo nº 2013/03181-6, cuja vigência já terminou), com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Ministério da Educação.

Acesse as pesquisas aqui.

Uma versão desta reportagem de divulgação científica foi publicada previamente numa dissertação de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural da Unicamp (processo 2015/00073-3), orientada pela professora doutora Graça Caldas, igualmente apoiada pela FAPESP e pela CAPES. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não necessariamente refletem a visão da FAPESP e da CAPES

Reportagem publicada na Revista Uniso Ciência – Primeira edição (confira a edição completa aqui)