Ciberespaço deixa democracia de fora

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Para ela, a inovação percorreu um caminho que foi subvertido conscientemente. Crédito da foto: Divulgação

Filósofa fala sobre a disseminação de notícias falsas nas redes sociais. Crédito da foto: Divulgação

A filósofa norte-americana Shoshana Zuboff, professora emérita da Harvard Business School, se dedica a estudar como a tecnologia vem transformando relações sociais e econômicas desde a década de 1980. Em 1988, ela publicou o livro In the Age of the Smart Machine, em que refletia sobre o impacto do mundo eletrônico para o mercado de trabalho. Agora, ela se debruça sobre o fenômeno protagonizado por empresas como Google, Facebook, Amazon, Microsoft e Apple, que vem se desenrolando nos últimos 20 anos, para não apenas compreendê-lo, mas também nomeá-lo e indicar caminhos para refreá-lo. É o que ela faz no livro “A era do capitalismo de vigilância”, publicado nesta semana pela editora Intrínseca.

Quando o físico britânico Tim Berners-Lee desenvolveu a World Wide Web (WWW), em 1989, ele abriu caminho para a criação da internet como a conhecemos hoje, com o intuito de torná-la, em suas palavras, “uma plataforma aberta que permitiria qualquer pessoa em qualquer lugar trocar informações, ter oportunidades de acesso e colaborar para além de barreiras geográficas e culturais”. No livro “Dez argumentos para deletar agora suas redes sociais”, o cientista da computação e pioneiro do estudo em realidade virtual Jaron Lanier lembra que a atmosfera no início da internet era de euforia em relação a um futuro colaborativo, em que tudo seria feito em código aberto. Zuboff explica em seu livro que, em 2000, o projeto Aware Home, desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia da Geórgia, antevia o que se convencionou chamar de “casa inteligente” e “internet das coisas”, imaginando um “futuro digital capaz de empoderar os indivíduos a fim de levar uma vida mais eficaz” e com forte compromisso com a privacidade. De que forma valores tão nobres acabaram por se degenerar e transformar a internet em um espaço de vigilância, disseminação de notícias falsas, propagação de teorias conspiratórias, alienação e desconfiança?

Para Zuboff, esse sonho de um mundo conectado com enfoque no bem-estar dos usuários dos produtos deu lugar a um novo modelo de sistema econômico, que usa justamente a produção de dados e informações para exercer poder e controle. É disso que se trata o capitalismo de vigilância. Nesse regime, os dados fornecidos espontaneamente pelos cidadãos alimentam mecanismos de predição que movimentam o que a autora chama de mercados de comportamentos futuros. O mais importante para Zuboff é que esse sistema não é inerente à tecnologia, o caminho que a inovação percorreu nos últimos 20 anos foi subvertido conscientemente.

Pioneiro nessa prática, o Google, de acordo com a autora, se aproveitou de alguns fatores, como o contexto econômico que favorecia a desregulamentação das atividades inspirado por pensadores neoliberais e a sede por segurança nacional galvanizada pelos ataques de 11 de setembro de 2001, para conquistar terreno na zona cinzenta da vigilância de civis. E não basta simplesmente evitar a internet: o espaço virtual se tornou tão ubíquo e incontornável nos últimos anos que pagar para ser controlado pelo capitalismo de vigilância é um pacto faustiano, na visão da autora, pois, assim como no mito do Fausto, nós entramos em um acordo irrecusável embora o que precisemos pagar em troca destrua nossa vida como a conhecemos.

Para ela, a inovação percorreu um caminho que foi subvertido conscientemente. Crédito da foto: Divulgação

“A prova do nosso entorpecimento psíquico é que há apenas algumas décadas a sociedade americana denunciava as técnicas de modificação de comportamento como ameaças inaceitáveis à autonomia individual e à ordem democrática. Hoje as mesmas práticas encontram pouca resistência, ou mesmo questionamento, quando são rotineira e difusamente implantadas na marcha rumo aos lucros da vigilância”, escreve ela.

Zuboff argumenta que todos os seres vivos precisam de um lar para voltar, mas que o mundo digital só poderá ser um lar se lutarmos contra o capitalismo de vigilância. Caso contrário, estaremos condenados a ser exilados nessa nova realidade. Zuboff aceitou responder algumas perguntas da reportagem por videoconferência. Veja os principais trechos da conversa:

Parecemos estar falhando enquanto sociedade em restringir a ascensão do capitalismo de vigilância. O que nós podemos fazer enquanto indivíduos para nos resguardar?

Eu discordo com essa afirmação. Na verdade, nós não começamos a tentar restringir. As soluções virão por meio do processo democrático com novos marcos legislativos e instituições de fiscalização. É verdade que, ao longo das últimas duas décadas, o capitalismo de vigilância floresceu sem impedimentos, mas só se nós fizermos tudo o que pudermos e ele continuar a crescer pelos próximo vinte anos que eu me preocuparia. Nós nem tentamos. Nos últimos 18 meses, houve um crescimento exponencial de propostas regulatórias, desde 2019 temos visto esse movimento nos Estados Unidos, que está muito atrás da Europa nessa questão Em dezembro, a Comissão Europeia trabalhou na Lei dos Serviços Digitais e na Lei dos Mercados Digitais. Não é tudo o que é preciso, mas eu vejo como um gigantesco Titanic começando a desviar do iceberg, que no caso é um Zuckerberg. O que precisamos é que o mundo digital viva sob leis. O ciberespaço é um mito inventado para deixar a democracia de fora. Sabemos que isso não existe. O ciberespaço é metal, dinheiro, pessoas. O que eles fazem é complicado e abstrato, mas não é algo de outro mundo. É capitalismo. Eu me sinto otimista, acredito que temos a próxima década para fazer isso funcionar. Já enquanto indivíduos, já passamos do ponto em que possamos fazer alguma coisa. É como o aquecimento global. O que podemos fazer? Podemos virar vegetarianos, usar lâmpadas mais econômicas, mas sabemos que isso não fará uma diferença real na trajetória das mudanças climáticas. A única coisa que funcionará, tanto para o aquecimento global quanto para o capitalismo de vigilância, é a ação coletiva.

De que modo a pandemia afetou o capitalismo de vigilância?

É uma via de mão dupla. Por um lado, ela tornou essas empresas mais ricas e poderosas, aumentou a demanda por atividade virtual e, com isso, a extração massiva de dados pessoais. Mas há uma justaposição esquisita. Em abril de 2020, 1,5 bilhão de crianças não podiam ir à escola, o que multiplicou significativamente a presença do Google no espaço educacional. No mesmo mês, um procurador do Novo México processou o Google Classroom e toda a sua suíte de ferramentas educacionais por extração ilegal de dados estudantis. Cada vez mais pessoas dependem desses serviços virtuais, mas isso expôs mais pessoas a algo de que elas não gostam. Pesquisas mostram que a confiança do público nas empresas de Mark Zuckerberg só não é mais baixa do que a confiança na indústria do tabaco. O capitalismo de vigilância é baseado na extração de dados, que requer engajamento. Para tanto, o conteúdo mais tóxico é amplificado, porque ele magnetiza mais engajamento. Então a desinformação é uma consequência desse sistema. Ela é produto de sua operação. Em outubro de 2020 o Centro Nacional de Preparação para Desastres da Universidade de Columbia publicou um estudo sobre mortes evitáveis por Covid-19 nos Estados Unidos. Na época, de 217 mil mortes registradas - agora são mais de 500 mil -, entre 130 mil e 210 mil eram evitáveis. Quatro razões chave foram identificadas, entre elas a recusa em cumprir os protocolos de prevenção, como o uso de máscara e o distanciamento social, e a politização da pandemia. Essas questões são originadas por campanhas de desinformação nas quais o Facebook cumpriu um importante papel ao amplificar e disseminar. Em abril, os dez principais sites de desinformação sobre a Covid-19 receberam 300 milhões de engajamentos pelo Facebook, comparados aos 70 milhões dos dez principais sites de informação sobre saúde pública. Quase 20% desse conteúdo foi checado e rotulado como falso, mas continuou circulando. O capitalismo de vigilância matou centenas de milhares de cidadãos americanos e isso ocorreu, certamente, em outros países. (André Cáceres - Estadão Conteúdo)