Buscar no Cruzeiro

Buscar

Seminário internacional discute sobre uma escola mais acolhedora

29 de Março de 2019 às 00:03

Em busca de uma escola mais acolhedora O II Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura aconteceu entre os dias 19 e 21 de março na capital paulista. Crédito da foto: Fernando Cavalcanti

O ataque à Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, e as ameaças a outras instituições de ensino, que surgiram após o ocorrido em diversas cidades -- incluindo Sorocaba -- , motivadas por jovens que resolveram “pegar carona” na repercussão do primeiro caso, levantaram novamente a necessidade de rever como anda o ambiente escolar. Mais do que reforçar a segurança, estudiosos do tema, pesquisadores, educadores e estudantes falam sobre a necessidade de uma política pública que torne a escola mais acolhedora.

Esse assunto foi um dos temas abordados durante o II Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura, promovido no Sesc Pinheiros, em São Paulo. O evento, que ocorreu entre os dias 19 e 21 de março, foi resultado de parceria entre o Itaú Social, Sesc Pinheiros, Comunidade Educativa Cedac e Instituto Emília.

“Se a gente sabe quem morre, quantos morrem e por que morrem, por quê a gente não faz nada?” - Ivan Contente Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz

Ivan Contente Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz, lembrou que essa violência que se apresenta na escola é parte da violência estrutural enraizada na sociedade brasileira. Ele apresentou dados e fez questão de frisar: “Se a gente sabe quem morre, quantos morrem e por que morrem, por quê a gente não faz nada?”. A partir daí, seguiram-se colocações sobre como se combate essa violência quando ela também se faz presente na escola. No caso de Suzano, Ivan lembra que a resposta de representantes do governo foi “vamos armar os professores”. “Então vivemos a naturalização da estética da guerra”.

Em busca de uma escola mais acolhedora Para Rosane Borges, as pessoas só se comovem diante daquelas que reconhecem como iguais. Crédito da foto: Fernando Cavalcanti

Para falar sobre esse tipo de violência é preciso entender um pouco como ela ocorre e por que se faz tão presente na sociedade. A escritora e professora Rosane Borges, colaboradora do grupo de pesquisa Estética e Vanguarda da ECA USP e conselheira de honra do grupo Reinventando a Educação, citou que o País, que sempre foi violento, piorou a partir de 2013, 2014, com o incentivo de discursos de ódio. “Que políticas são essas? Que dinâmica social nos autoriza que esses discursos de ódio sejam subscritos por nós?”, perguntou.

Na análise de Rosane, preconceitos como racismo, misoginia e homofobia, entre outros, ainda se perpetuam porque as pessoas só se comovem diante daquelas que reconhecem como iguais. Ela citou o filme “Tempo de matar” como um exemplo. “A defesa teve de mediar o sofrimento de uma criança negra, fazendo as pessoas imaginarem que se tratava de uma criança com o corpo branco.” Rosane citou uma fala de Florestan Fernandes. “Ele costumava dizer que o brasileiro tem preconceito de se dizer preconceituoso. O que temos de novidade agora é que estamos saindo do armário”, disse.

[irp posts="97076" ]

 

Outro participante da mesa de debates, o jurista Silvio Luiz de Almeida, doutor e pós-doutor em filosofia e teoria geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP, professor em compliance antidiscriminatório e governança e ética corporativa da FGV e presidente do Instituto Luiz Gama, contextualizou como se deu a constituição do Estado brasileiro, para melhor entendimento da situação de violência no País. “O que existe aqui é uma tentativa de racionalização da violência.” Conforme ele, o Estado brasileiro nos anos 1930 assumiu um modelo patriarcal em que o machismo e o autoritarismo foram embricados nas relações sociais, inclusive jurídicas. “Mesmo nos períodos democráticos esse modelo não se rompeu”, observa. “Ainda que a Constituição de 1988 tenha instituído um novo modelo, de ordem jurídica.”

Em busca de uma escola mais acolhedora O jurista Silvio de Almeida relaciona a violência atual com detalhes da constituição do Estado brasileiro. Crédito da foto: Fernando Cavalcanti

Conforme Silvio, a tentativa de ser uma nação é uma tentativa de normalizar o autoritarismo. “Não existe ditadura e nem golpe de Estado sem juristas. Essas desgraças acontecem por causa do direito e não pela falta dele. Não é porque falta Estado, mas porque tem Estado. Não é possível reproduzir violências sem ter Estado.”

[irp posts="94902" ]

 

Silvio observa que aqui no Brasil não existe elite, o que existe é “gente violenta com dinheiro, que não tem o mínimo de compromisso com o projeto nacional de desenvolvimento e nem quer tirar o Brasil da subalternidade.” Para ele, estamos vivendo o grotesco . “Estamos diante de algo que não sabemos reconhecer, é a doutrina do choque. Parece que estamos dentro de um quadro do Goya. Estou vendo que daqui a pouco um bicho fantástico vai arrancar minha cabeça.”

Silvio afirma que a violência estrutural e o racismo estrutural funcionam porque conseguem manter as pessoas de olhos fechados o tempo todo.

Jovens estudantes pedem afeto

Em busca de uma escola mais acolhedora Bruno diz que na escola sentiu o que é racismo e homofobia. Crédito da foto: Fernando Cavalcanti

Entender o processo de violência em que a sociedade brasileira está inserida é importante para poder mudar. Mas como blindar a escola disso tudo? Com afeto. É o que dizem os jovens estudantes.

Bruno de Souza, estudante de Pedagogia que atua em um projeto social em Parelheiros e Jardim Ângela, em São Paulo, só vê esse caminho. Formado em Direitos Humanos pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), ele afirma que a escola onde estudou o ensino básico era muito opressora. Negro e homossexual, ele afirma que foi o primeiro lugar onde sentiu o que era racismo e homofobia. Uma vez, durante uma aula de Geografia, em que o professor falava sobre erosão do solo, ele propôs para irem ver na prática, já que isso ocorria atrás da escola. Bruno foi mandado para a diretoria e, como castigo, teria de ficar na biblioteca. Assim é que conheceu os livros. Gostou e teve contato com o pessoal da biblioteca comunitária de Parelheiros. Foi acolhido pelos livros. “Encontrei uma literatura que tinha muito a ver comigo. Se a escola por um lado não fazia isso, a biblioteca fazia.”

[irp posts="94880" ]

 

Na concepção de Bruno, uma escola acolhedora é uma escola que fale de afeto. “E além de falar de Português, Matemática, Geografia, crie espaços para que as questões da comunidade entrem naquele ambiente, que os jovens e a comunidade possam juntos pensar numa possibilidade de transformação, isso tem muito a ver com gestão democrática.” Conforme Bruno, a escola deve ouvir os alunos, ter interesse em saber o que eles sentem, o que acontece com eles.

Em busca de uma escola mais acolhedora Para Ketlin, escola precisa aprender a dialogar com os alunos. Crédito da foto: Fernando Cavalcanti

Ketlin Santos, estudante de Pedagogia e mediadora de leitura na mesma biblioteca em que Bruno atua, acredita que as coisas não vão mudar enquanto a escola continuar limitando os alunos. “As escolas não estão preparadas para isso, as escolas precisam dialogar com as crianças, os jovens. E quando a gente não sabe escutar o outro, a gente não sabe renovar.”

Mais projetos e menos psicólogos

Em Sorocaba, educadores também têm debatido a questão da violência no ambiente escolar. A professora e orientadora pedagógica sorocabana Gláuci Mora, mestre em Psicologia da Educação pela USP, trabalha há anos com formação de professores e afirma que esses casos são complexos e envolvem uma discussão ampla que passa pela formação de professores, salários e, principalmente, habilidades socioemocionais.

Ela afirma que fez parte, no semestre passado, de um grupo de estudos sobre “Projetos de vida, cidadania e educação”, na USP, onde se falou muito sobre a Pedagogia de Projetos, sobre envolver os estudantes com coisas que se identifiquem. A respeito da lei que pretende inserir o psicólogo na escola, ela disse ser muito resistente a essa questão. “Sou orientadora educacional, não faço papel de psicólogo, mas faço uma mediação muito direcionada a questões afetivas e sociais do aluno.”

Essa questão da violência acontece em escolas públicas e particulares e não é o profissional da psicologia que vai resolver” - Gláuci Mora, mestre em Psicologia da Educação pela USP

Gláuci lembra que o estudante é um ser humano que tem suas vivências, muitas vezes passa por problemas familiares, sofre com ansiedade ou outro tipo de questão emocional, e está inserido numa sociedade cujos valores estão passando por modificação no âmbito da moralidade, da afetividade. “Existem intolerâncias, diferenças. Tem também uma questão política que está instigando muito o uso de armas, uma série de coisas. Essa questão da violência acontece em escolas públicas e particulares e não é o profissional da psicologia que vai resolver”, acredita. É necessário, conforme ela, ter uma formação de professores com excelência, que sejam preparados para trabalhar com todos esses âmbitos, tanto as habilidades socioemocionais quanto de conteúdos significativos.

Nesse sentido, o que poderia existir são políticas públicas que promovam o diálogo entre educação, assistência social e saúde. Professores e população em geral poderiam conhecer mais sobre os transtornos mentais para identificar algumas ocorrências. É o que tem feito o médico Gustavo Estanislau, especialista em psiquiatria da infância e adolescência e organizador do livro “Saúde mental na escola: o que os educadores devem saber”. Ele tem feito palestras sobre o tema, com o objetivo de esclarecer mais a respeito do mesmo.

Boas relações

Conforme o médico Gustavo Estanislau, casos como o de Suzano acontecem embasados nas relações que existem dentro da instituição de ensino. “É preciso trabalhar as boas relações na escola, a questão do bullying, a promoção da saúde dentro das relações, as competências socioemocionais, o autoconhecimento, a empatia, então se isso for feito é bem possível que as relações se estabeleçam de forma mais legal e a tendência é as pessoas terem relações que não motivem esse tipo de evento.”

Gustavo não acredita que as escolas tenham de se responsabilizar pelo atendimento psicológico ou suporte psicológico de seus alunos. “Temos de tomar cuidado para não rotular e nem determinar isso. Acredito que exista uma situação intermediária que tem de ser trabalhada. Os educadores, pais e a população em geral têm de conhecer mais sobre a saúde mental, os transtornos mentais. A gente tem feito isso no projeto que eu trabalho, o Cuca Legal, da Unifesp. Temos levado capacitação para essas pessoas.”

Conforme o psiquiatra, entender as nuances da saúde mental e do transtorno faz uma diferença muito grande. “Pessoas que se envolvem nesse tipo de atividade violenta têm alguma fragilidade do ponto de vista da saúde mental. A população em geral precisa ir se aproximando desse tipo de assunto. Isso contribuiria com a identificação de quem precisa de tratamento.” (Daniela Jacinto)

* A reportagem esteve no seminário a convite do Itaú Social.

Galeria

Confira a galeria de fotos