Buscar no Cruzeiro

Buscar

Saudade da briga

12 de Junho de 2020 às 00:01

Em 2011, o Brasil discutiu bastante a respeito de, vejam só, um livro. Lembrei desse rolo de quase dez anos atrás ao reler a prova de redação da Unifesp de 2012. Não exagero ao dizer que a cuíca roncou forte.

Naquele ano, o MEC havia comprado e distribuído um livro didático que dizia, lá pelas tantas, o seguinte: “Você pode estar se perguntando: ‘Mas eu posso falar ‘os livro’?’ Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve e o que não se deve falar e escrever, tomando todas as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”.

Perdoem a citação longa, mas ela é necessária. O trecho que vocês acabaram de ler rendeu um sururu danado. Editoriais furiosos de jornais afirmavam que o MEC estava corrompendo a escola brasileira. Na televisão, apresentadores babavam sua ira e diziam que este mundo estava perdido. Perdi a conta de quantas vezes perguntaram o que eu achava da treta. Foi um inferno.

Acho que a minha resposta decepcionou muita gente. Ser professor de gramática não é moleza. Acham que sou um fiscal implacável da pureza linguística. Acham que o grande prazer da minha vida é corrigir os coitados que ousam cometer algum desvio da norma-padrão. Como se eu fosse uma caricatura saída, sei lá, de um conto do Monteiro Lobato.

Na época da polêmica linguística, eu respondi que o livro tratava do óbvio. O tal trecho polêmico diz que “você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico”. Acham que é exagero? Conheço gente que é ridicularizada por ter falado “houveram”. Imaginem as chances de uma pessoa dessas subir na carreira. Ora, ora, vão dizer que preconceito linguístico não acontece?

Num outro momento, encontramos no livro: “O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”. É a descrição elementar do funcionamento de uma língua viva. Sempre digo aos meus alunos que o ideal é ser poliglota dentro do próprio idioma. Entram nesta história os sotaques, as gírias, os jargões profissionais, as diferenças econômicas, a formalidade, a informalidade etc. Nosso patrimônio é vasto. Burrice não se esbaldar nele.

Vocês perceberam que eu encaro o trabalho com o idioma como algo bem distante do tradicional, certo? Preciso tomar muito cuidado aqui. Não quero transmitir a ideia de que considero algo menor o trabalho com a norma-padrão na escola. É o contrário. Considero crucial o trabalho com a norma-padrão.

Essa variação não carrega a palavra “padrão” à toa. É padrão porque se pretende universal. Se uma língua viva comporta as variações, é necessário que se encontre um denominador-comum. Na prática, um código que possa ser usado sem crise em todas as partes do Brasil. Contratos são redigidos tendo a norma-padrão como referência.

A mesma coisa vale para os processos que correm na Justiça. A mesma coisa vale para os textos acadêmicos. Há várias situações que tomam a norma-padrão por base. Ora, se a banda toca assim, dominar tal código não é uma questão de diletantismo, como muitos acreditam. Sempre defenderei que o conhecimento da norma-padrão é, antes de tudo, exercício da cidadania.

Em 2011, eu respondia que um trabalho mais arejado não soterra o rigor da tradição. É possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Muita gente não compreendeu. Eu diria que muita gente situada nas duas pontas da discussão não compreendeu. Os tradicionalistas achavam que uma discussão mais pautada pela linguística era sinal de escola fraca. Os que criticavam o ensino tradicional achavam que as regras desrespeitavam os alunos. Continuo com as convicções de 2011. Não é uma coisa ou outra; é uma coisa e outra.

Reli a prova de Unifesp e bateu uma tristeza danada. Saudade imensa de quando as brigas eram em torno de um livro. Eu era feliz e não sabia.