Sorocaba, a cidade feira
Uma viagem pela história, cultura e memória da cidade que se formou às margens do rio. Do Peabiru ao cavalo de aço
Se você quiser saber como faz para pegar a velha estrada do Peabiru, eu te digo: ande pelo centro de Sorocaba, pela General Carneiro, pela rua São Bento. É por lá que passa o Peabiru, o caminho que já era conhecido entre diversos povos indígenas como uma rota ancestral, associada a mitos de origem e passagens sagradas.
A moda de viola, tocada por Almir Sater, reflete duas partes fundamentais da história sorocabana: a cultura dos violeiros e o caminho do Peabiru que passa pela cidade. Contar a história de Sorocaba é fazer um exercício de memória, uma vez que a maior parte dos grandes marcos está por aí, ainda visíveis nos dias de hoje. Seja na estátua do fundador Baltazar Fernandes, seja no ato de dar uma “guaribada” nas coisas e manter um dialeto local vivo.
Sorocaba significa “terra rasgada” em tupi-guarani, o rio rasga a cidade. Mais que um nome, esse fato é um indicativo: a cidade só existe por conta de sua geografia. José Rubens Incao é uma das vozes mais importantes para a historiografia local. É ele quem afirma que a cidade representa, geograficamente, um dos locais mais indicados para o estabelecimento de uma feira. Feira no sentido antigo: o ponto de encontro entre comércio e cultura, onde se cruzavam mercadores, camponeses e viajantes em torno de trocas econômicas, sociais e simbólicas. Os campos, com pouca variação de altitude, eram ideais para a criação de animais.
O clima, ameno o suficiente para receber, sem grandes problemas, sulistas e nordestinos. Não era tão frio, nem tão quente. A passagem do Peabiru, oito palmos de largura, o caminho dos indígenas, só confirma que o local sempre foi passagem para qualquer um que quisesse andar pelo continente.
Há pelo menos 4 mil anos, a bacia do rio Sorocaba já era lar de povos que caçavam, coletavam e deixaram suas marcas em flechas, urnas e ferramentas espalhadas pelo chão, datadas por pesquisas arqueológicas. Com o tempo, rotas ancestrais como o Peabiru trouxeram grupos indígenas como tupinambás, tupiniquins e guaranis, que fincaram suas aldeias e tradições nesta terra, entrelaçando suas histórias ao próprio rio que rasga a cidade. Esses povos originários já habitavam a região pelo menos três séculos antes da chegada dos colonizadores europeus.
Nos lombos das mulas veio o futuro
A região já via os primeiros sinais de colonização no final do século XVI, com a Vila de Nossa Senhora da Ponte de Monte Serrat sendo estabelecida em 1599. Um entreposto. Por aqui passavam exploradores e aventureiros. Mas foi em 1654 que o capitão Baltazar Fernandes — aquele que hoje observa a rua São Bento — recebeu os campos do sul do Estado. Ele vinha de uma família de fundadores: os Fernandes não foram responsáveis apenas por Sorocaba, mas também por Santana de Parnaíba, onde André Fernandes fincou residência, e por Itu, onde Domingos Fernandes chegou.
O capitão Baltazar mostrou-se disposto a ajudar a cidade a se desenvolver. Encomendou o pelourinho, doou um terreno para os beneditinos. São Bento: aquele que seria tão presente no desenvolvimento da cidade — o mosteiro, a rua, o time.
E assim o tempo passou, e Sorocaba, o velho ponto de feira, se tornou importante em diversos ciclos econômicos brasileiros. Primeiro, a feira de muares: as mulas que vinham do sul ficavam por aqui e eram vendidas para o País inteiro. Café, ouro, madeira, tudo carregado nos lombos das mulas. Soldados, imperadores e comerciantes, todos levados nos lombos das mulas. No ir e vir dos tropeiros sorocabanos, mais de 300 cidades foram criadas. A moda de viola se espalhou, violeiros foram do sul ao norte, contando suas longas cantigas de sagas e valentia. O principal prato típico da cidade surgiu, trazido pelos nordestinos: o costume de comer farinha de milho cozida não foi bem recebido por aqui. Resolveram misturar, palmito, ovo, o que tivesse ao alcance. Nascia o cuscuz paulista. Comida de tropeiro. Comida de sorocabano.
Depois, chegou o algodão: a fibra branca que transformou os campos da terra rasgada. A maior parte do algodão era vendida crua, mas as primeiras tentativas fabris já apareciam. Logo, o lugar seria chamado de “Manchester Paulista”. A Inglaterra, maior compradora de algodão até então, aconselhou a cidade a tratar o produto. As tecelagens nasceram.
Logo, Luís Mateus Maylasky traria o cavalo de ferro. As mulas viraram cavalos, alimentados com fogo e carvão. E as trilhas viraram trilhos. O trem chegava, apitando, trazendo a modernidade.
A primeira metalúrgica da América Latina foi construída aqui: Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema, em Iperó. Lá foi fundido o futuro. Também lá foram fundidos os canhões que hoje adornam o Centro, na praça Arthur Fajardo, popular “praça do canhão”. Hoje, na praça, estão dois. Outros são peças de museu e estão na capital, no Museu do Ipiranga.
Canhões estes que nunca foram utilizados em guerra, mas que foram fundidos para apoiar a Revolta Liberal de 1842. Rafael Tobias de Aguiar — que ainda está lá, cuidando dos canhões — presidente deposto da província e morador ilustre da cidade, ergueu ali seu quartel-general contra a política centralizadora de D. Pedro II. A feira de muares, que movimentava comerciantes e tropeiros de todo o País, virou ponto estratégico para a insurreição. Mas as tropas imperiais, comandadas pelo Duque de Caxias, marcharam para Sorocaba e prenderam Padre Feijó, outro dos líderes.
Duque de Caxias prestaria ainda um gesto de profundo respeito e colocaria um soldado para guardar o Recolhimento Santa Clara, onde estava hospedada a Marquesa de Santos, esposa de Rafael Tobias.
Mas a história de Sorocaba, entrelaçada por muitos fios, também viveu momentos de fervor e união diante dos desafios do País. Em 1932, durante a Revolução Constitucionalista, Sorocaba desempenhou papel importante no movimento. A cidade, com sua economia em crescimento e forte presença industrial, mobilizou trabalhadores, estudantes e militantes que se engajaram na causa paulista. Fábricas locais foram adaptadas para a produção de suprimentos e equipamentos para os voluntários que partiram para os combates. Além disso, Sorocaba serviu como ponto estratégico de apoio logístico e organização.
De mão em mão
Quando José Rubens Incao vai falar sobre a cultura sorocabana, muita coisa aparece. Com voz calma e contínua, ele descreve uma característica do bom tropeiro, que se tornou presente no jeito de ser do sorocabano: a fala mansa. O bom tropeiro nunca grita ou bate nas mulas que empacam. Mas conversa, com calma, com classe. Convence. Sorocabano e o seu jeito manso de conversar. De atender.
Por entre os itens do Museu Histórico Sorocabano é possível entender que a cidade não foi feita apenas por homens duros, mas também pela delicadeza dos artesãos, dos costureiros, dos músicos, das mães. Priscila Collaço explicava para o filho Felipe Alberto Nogueira, de 9 anos, os detalhes, a diferença de uma sela e um arreio. Os detalhes da lida. Ela vem de família de tropeiros que mantém as tradições. A avó confeccionava ponchos. O irmão recupera selas antigas. E, todo ano, participa da Tropeada Itararé/Sorocaba: no lombo de mulas, os cavaleiros e amazonas relembram os tempos áureos do tropeirismo. Felipe afirma, com os olhos brilhando de orgulho, que ano que vem fará o percurso com o tio. A vida sempre tem razão. A cidade dos caminhos, se tornou a cidade dos encontros.
Hoje, Sorocaba carrega, em suas pedras antigas, nas calçadas gastas e nas portas de madeira dos casarões, a lembrança viva de um tempo que não se apaga. É nas histórias contadas à sombra das mangueiras centenárias, nos passos lentos pelos corredores dos museus e bibliotecas, e no silêncio reverente das igrejas que a cidade revela sua alma. O cheiro do pão quente que sai das padarias, o toque firme das mãos dos artesãos que moldam o couro, a cerâmica, as facas. Sorocaba é, afinal, a cidade dos encontros, um ponto onde passado e presente se cruzam, caminhando juntos. Uma feira. Em essência.