‘O Pagador de Promessas’ ganhava a Palma de Ouro na França há 60 anos

Produção do saltense Anselmo Duarte desbancou 34 longas e fez história

Por Denise Rocha

Anselmo preparava os quadros, empurrava a câmera, dirigia os atores e atendia a produção.

Amanhã (23) fará 60 anos que O Pagador de Promessas, dirigido por um caipira bonitão de Salto, cidade que faz parte da Região Metropolitana de Sorocaba (RMS), ganhava a Palma de Ouro em Cannes, na França. Aos 42 anos, Anselmo Duarte desbancou 34 longas de 27 países para ganhar a premiação mais importante de um dos eventos mais consagrados do universo audiovisual. Até hoje é o único longa do País a receber o principal prêmio entregue em festivais de cinema. O feito fica ainda mais importante quando lembramos que o filme brasileiro, baseado na peça teatral homônima de Dias Gomes, concorria com produções de Luis Buñuel, Michelangelo Antonioni, Otto Preminger e Robert Bresson, Sidney Lumet, Caccoyanis, Tony Richardson, Pietro Germi, Agnés Varda, Leopoldo Torre Nilsson, entre outros tantos nomes de diretores experientes e renomados.

O mérito do saltense está no envolvimento que ele teve com o trabalho, ao preparar os quadros, empurrar a câmera, dirigir os atores e atender a produção. O enredo narra a saga de Zé do Burro, interpretado por Leonardo Villar. O personagem desesperado para salvar o seu burro doente, como promessa pela cura, carrega uma cruz tão pesada como a de Cristo até a igreja de Santa Bárbara, em Salvador. No elenco, artistas como Glória Menezes, Norma Bengell, Antonio Pitanga e Othon Bastos.

Aliás, não foi só na Côte d’Azur francesa que o filme foi destaque. Na verdade, foi o mais premiado em 1962, com os prêmios Darius Milhaud de Melhor Filme, fora as premiações em dezenas de festivais, com recebimento de menções especiais e honrosas na Suíça, Itália, Canadá e Rússia, além de ser o primeiro filme brasileiro indicado para o Oscar na categoria Melhor Filme Estrangeiro. Inegavelmente, abriu caminho para o que viria depois. Mas o cineasta saltense também pagou um alto preço por isso.

“Os cinemanovistas não aceitavam o fato de um cineasta, saído da burguesa Vera Cruz, ter ganhado o prêmio mais respeitado do cinema mundial, que era a Palma de Ouro. Ou seja, a inveja cultural, àquela época, já passava pelo viés ideológico. Misturava-se, e ainda hoje é assim, arte com política, no sentido mais nocivo que se possa conceber a narrativa artística”, avalia Oséas Singh Jr., autor da biografia do artista (“Adeus, Cinema”) e atual secretário de Cultura de Salto.

Para o biógrafo que conviveu por dez anos com Anselmo, além do bom argumento de O Pagador de Promessas, a produção tinha as pessoas certas. “O filme contou com um time de primeiríssima qualidade, oriundo da falecida Vera Cruz. Por exemplo, a direção fotográfica é simplesmente espetacular para um filme feito há 60 anos. O inglês Chick Fowle foi o diretor de fotografia. Compare ‘O Pagador de Promessas’ com outros filmes brasileiros do mesmo período e notará que o filme de Anselmo Duarte é o que melhor envelheceu, com mais qualidade”, explica.

Anselmo Duarte Jr., um dos filhos do diretor, que atua também com produção e direção, e reside em Natal (RN) há 20 anos, conta que o Brasil já havia sido indicado por mais de 30 vezes. Para ele, a vitória tem muita relação com a história de um homem simples, com uma adaptação original que incluiu música, danças, figurinos, costumes, diálogos e locações de uma região e realidade nunca antes vistos por muitos, inclusive brasileiros. “O filme é atemporal porque muitas questões e desafios políticos e sociais abordados há 60 anos de uma forma cinematográfica, talvez distantes da maioria dos brasileiros, hoje fazem parte do nosso cotidiano”, comenta.

O assunto também fez parte de muitas conversas entre pai e filho. “Ele revelou-me algumas vezes que logo após vencer a Palma de Ouro teve momentos de muito prazer e orgulho, como o encontro e o reconhecimento de vários diretores que estavam por lá que o parabenizaram, como Truffaut, Fellini e o Antonioni que competiu com ele”, relembra. Bem ao estilo de Anselmo, o filho conta de um momento icônico. “Ele fazia brincadeira, rindo, que o Consulado não tinha verba para oferecer um coquetel, como de praxe os vencedores oferecem, e então o cônsul, na época, ofereceu um rodada de caipirinhas para os europeus e ele disse que a cachaça ia matar todo mundo e que ele não aceitava. Declinou e foi comemorar num bar de um amigo em Cannes servindo champanhe para todos”, conta.

Entre tantas histórias, Anselmo Jr. cita um suposto impasse envolvendo Anibal Massaini, filho do produtor Oswaldo Massaini, que estaria vendendo a obra sem prestar contas à família Duarte. Ele ainda produziu o documentário “De Salto para o cinema”, com imagens captadas entre 1998 e 2004, disponível no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v= Y_WCBQQf_Cs&t=32s) para contar a trajetória do pai que marcou a história do cinema brasileiro. “Desde criança, juventude e como ator consagrado virou noites e madrugadas para aprender o ofício: montagem, iluminação, elétrica e fotografia. Se dedicou e se deu bem”, conclui.

A Palma de Ouro está exposta em Salto, no Centro de Educação e Cultura Anselmo Duarte, que passou a ter o nome do cineasta após morte dele aos 89 anos, em 2009. (Denise Rocha)