Magia e ciência

Por

Crédito da foto: Vanessa Tenor

Crédito da foto: Vanessa Tenor

Leandro Karnal

A modernidade fez uma aposta. A razão triunfaria com o passar do tempo. Não era a primeira vez que os humanos acreditavam nisso, mas se revigorava um desejo antigo, que nunca desapareceu na Idade Média. No início, acreditava-se que éramos todos tocados por algum tipo de Luz natural, pois éramos criaturas feitas por Deus a sua imagem e semelhança. Essa Luz afastaria as trevas de nossos seres e poderíamos ver a verdade usando de nosso raciocínio. Por mais distintos que fôssemos um dos outros -- cor de pele, olhos, cabelos, gênero etc. -- haveria em todos nós essa centelha divina que nos tornariam capazes de ver o mundo, pensar sobre ele. Claro, havia travas religiosas. A Igreja continuou insistindo no modelo aristotélico de universo e se recusou a olhar para uma luneta. Os cientistas de então, por vezes de forma sub-reptícia, continuaram a olhar pela luneta e anotar o que viam. Corrigiam seus dados, publicavam suas informações, reviam teorias. Substituíram um modelo geocêntrico por outro igualmente equivocado, o heliocêntrico. Nem a Terra nem o Sol eram o centro do universo... Depois, perceberam que as órbitas dos corpos celestes não eram circulares, mas elípticas. Estudou-se a trajetória de cometas, implodiram a ideia de um centro do universo no sentido clássico. Tudo isso observando, testando, criando e pondo à prova hipóteses, fazendo e refazendo cálculos, errando e acertando. O universo ficou infinito depois da luneta. Assim como a Terra se abriu em tamanho e possibilidades com as navegações. A reforma religiosa alargou os limites da cristandade também, deixando inquietos os espíritos que viam uma pretensa unidade da Igreja cindir irremediavelmente. O século 16 e o 17 prometeram rupturas: nenhuma unidade era possível se não fosse provada, testada. A mesma ciência moderna criou novas e mais eficientes máquinas de matar, torturar.

A ciência nasceu inquieta e assim sempre será. Nunca foi nem nunca será neutra. Serve a homens e serve-se deles. Gera lucros, permite que alguns se beneficiem dela desde que paguem seus custos. A mesma ciência que nos livrou de inúmeras doenças mortais do passado, que nos levou ao espaço, ao fundo do oceano, ao interior de uma célula é o mesmo conhecimento que fissurou um átomo. Resultado disso: energia, estudos de partículas que podem ser o futuro de nós todos, mas também a criação de bombas atômicas.

Logo, não cometerei aqui dois devaneios. O primeiro, não farei uma apologia da ciência como se ela fosse algo perfeito apesar de seu uso por vezes equivocado. A ciência é seu uso e, portanto, humana. O segundo, não oporei religião como cegueira e ciência como luz. Ambas mataram, ambas fizeram bem ao longo da História.

Feitas essa introdução e as ressalvas, vamos ao ponto: o avanço do anticientificismo nos dias de hoje. Se a aposta era de que a razão triunfaria, o mundo, esférico (ainda), continua dando voltas. Exemplo: nos Estados Unidos, há um debate intenso se as escolas deveriam ensinar a teoria da evolução como um fato ou negá-lo; uma versão branda do debate tenta dizer que Darwin deveria ser ensinado como possibilidade explicativa tanto quanto o criacionismo. Em 2008, dos pré-candidatos republicanos à presidência da República, um terço afirmava não crer na teoria da evolução a ponto de ela ser ensinada nas escolas. Nos pleitos seguintes, esse número decresceu. Nas últimas prévias, apenas Jeb Bush dizia que o ensino de Darwin deveria ser obrigatório... desde que ao lado do criacionismo. O atual vice-presidente dos EUA, Mike Pence, defendeu ponto de vista muito similar. Essa magia em uma década se explica como uma forma de ecoar seu eleitorado, cada vez mais anticientífico. Mas isso não é fenômeno apenas norte-americano, embora ele tenha, aparentemente, se fortalecido lá antes de se espraiar mundo afora.

O Brasil abraçou o movimento com vários polos. O primeiro tende a atrair adeptos da Terra Plana (alguém que vá até a esquina do planeta poderia me trazer uma foto como lembrança?), do banimento de pesquisas genéticas (que fazemos desde a primeira vez em que plantamos ou criamos/domesticamos animais, na pré-história), da negação ou naturalização do aquecimento global. No segundo ramo, a anticiência com ares “hippie chic”: eu não vacino meus filhos (e, com isso, doenças que eram erradicadas voltam) porque isso pode prejudicar a criança...

Se a ideia é banir a ciência, o que se pretende colocar em lugar dela? Poderíamos pensar na religião ou na magia. Essas são formas de apreender o mundo baseadas em crenças apriorísticas, verdades imutáveis, dogmas. A mente humana tende a se fechar e lucraremos menos. Literalmente. Dados da Scientific American de 2012 mostravam que cerca de metade de todo o crescimento econômico do mundo pós-Segunda Guerra se deveu a avanços na ciência e na tecnologia. A China era a maior potência do mundo quando, no século 15, criou incríveis frotas navais que singraram mares até a África e a península arábica. Depois, queimaram os navios porque não se interessaram pelo que viram, entre outros motivos. Parece-me que estamos queimando os nossos. Rapidamente.

Temo que seja ainda pior, que estejamos eliminando o pensamento racional, científico, demonstrável, questionável, possível de ser debatido e perfectível para o substituirmos pelo nosso ego. Apenas isso. Não quero que seja assim, logo não acredito. Não gosto, logo existo e só eu existo. Nem que me demonstrem empiricamente o contrário, meu laboratório é meu cérebro e meus tubos de ensaio são minhas convicções. A substituição do dado e do argumento pela opinião é uma tragédia coletiva. Vivemos o triunfo da vontade, da minha vontade. Há muitos anos, escasseiam verbas para formar bons pesquisadores de ciências (reforço: há muitos anos e não a partir de janeiro de 2019). Estamos perdendo vocações de jovens cientistas e o debate está dominado pelo senso comum amparado na atomização da rede. Qual será o efeito a médio e longo prazo? É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.