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O vigilante da torre

12 de Outubro de 2018 às 06:00

O vigilante da torre Crédito da foto: Lucas Araújo

Carlos Araújo

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Um dos problemas do homem é saber por que as sociedades ocidentais habitualmente se equivalem por serem tradicionalmente conservadoras, avessas às ideias provocantes. Muitas vezes a sensação é de que as coisas patinam, não saem do lugar. Passados muitos anos, essas inquietações levam a balanços como o de que nada mudou e nenhuma vanguarda foi suficiente para subverter coisa alguma. Nessa ciranda, a imaginada vanguarda permanece como registro de uma utopia pulsante, mas incapaz de quebrar alicerces e derrubar paredes da estrutura que sustenta a sociedade.

A história é farta em exemplos dessa teoria, mas três registros se destacam como ilustração: o Maio de 68 nas ruas de Paris, a Primavera de Praga na era soviética e a Primavera Árabe que no início desta década precedeu a guerra civil da Síria. Foram acontecimentos tão empolgantes nas suas origens utópicas quanto frustrantes nos resultados, que variam entre o legado nostálgico e o rastro de desastres.

Como explicar esses fenômenos? A necessidade de resposta tem relação com a busca incessante de compreensão do mundo. E decifrar a natureza das relações sociais é importante porque faz a diferença na hora de adotar uma utopia para dar sentido às ilusões humanas.

Nada mais inquietante num momento em que o Brasil e o mundo se deparam com desejos de superação de tempos extremamente difíceis, intolerantes, bárbaros.

Nessa hora, o socorro vem da filosofia de Michel Foucaut. Inspirado no conceito do filósofo Jeremy Bentham, o mestre francês reconstitui a metáfora da sociedade como uma prisão em formato circular. As celas são os compartimentos que compõem a sociedade e elas são distribuídas em alinhamento com a arquitetura redonda. No centro do círculo ergue-se uma torre de vigilância. E no ponto mais alto da torre há um vigilante com panorama muito amplo de todos os ocupantes das celas.

A contrapartida não é a mesma: os prisioneiros não enxergam o vigilante. O alcance de tudo o que veem se limita à parede opaca da torre. Mas sabem que são monitorados o tempo todo e têm consciência de que, se descumprirem as regras do cárcere, serão punidos com todo o rigor possível.

Na ideia elaborada por Foucault, as instituições de poder cumprem o papel da torre de vigilância. E o controle se dá por meios físicos e imateriais, de todas as formas e em todos os sistemas. Como resultado, os habitantes das celas imaginárias procuram seguir as regras da prisão e esse processo repercute na família, na escola, nos negócios, até mesmo na intimidade de casais. A consciência de controle coletivo e o medo de punição freiam qualquer tentativa de subversão da ordem. E quem romper esse equilíbrio paga um preço muito caro.

A teoria é descrita por Fouucalt em um “Vigiar e punir”, um livro clássico da filosofia, que mostra como se processa ao longo de gerações a manutenção da história como ela é e como sempre foi. Com o desconto de momentos de subversão da ordem que, embora cheios de criatividade, não são capazes de transformar a sociedade com a intensa pulsação das utopias.

Talvez seja por isso que, quando os homens pensam que avançaram em inteligência e conquistas sublimes, de repente um detalhe inesperado faz a roda da história dar a impressão de grande retrocesso. Um único indivíduo pode mudar a história com um gesto, uma palavra, um passo à frente. Mas isso não é suficiente para fazer a narrativa humana sair do lugar. Os alicerces que sustentam a prisão circular continuam firmes, inabaláveis.

E os prisioneiros continuam a serem vigiados. Pior ainda, passam a se vigiarem uns aos outros. Priorizam com alta relevância preocupações com o que o companheiro vai pensar das suas atitudes. Freiam pensamentos, ideias, gestos. Preferem a omissão à ação. Deixam-se reduzir a números, estatísticas, como se não tivessem rostos nem histórias. E não sabem quem é o vigilante de plantão no alto da torre. Não sabem nada.

Qualquer semelhança com o Brasil e os brasileiros não é mera coincidência.