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Na contramão dos clássicos (I)

20 de Setembro de 2019 às 00:01

Na contramão dos clássicos (I) Crédito da foto: Divulgação

Carlos Araújo - [email protected]

Embora recorrente, o tema voltou numa conversa com o amigo Giuliano Bonamim, um dia desses, no intervalo de trabalho: por que dedicar tempo e energia às criações humanas se muitos já fizeram isso com muito mais competência, criatividade, sofisticação artística? Por que criar obras num mundo em que tudo já foi escrito, cantado, falado?

Recordo outro amigo que disse ter abortado sua vocação literária depois de ter lido “Memórias póstumas de Brás Cubas”, do gênio Machado de Assis. Seu dilema era se conseguiria escrever uma obra de ficção tendo como parâmetro a absurda qualidade de Machado de Assis. Achava que não chegaria nem perto de tamanho talento. O mesmo problema castiga quem elege Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Osman Lins, como modelos de literatura, só para citar autores brasileiros.

No teatro, como superar Shakespeare? Na música, como ir além de Beethoven? O que fazer para superar Nijinkski, o mito da dança? Na música pop, quem se atreveria a encarar o delírio de ofuscar os Beatles? E na física, quem ousa desafiar Einstein? E no cinema, quem destrona Godard? E na MPB, o que fazer depois de João Gilberto, Cartola, Tom Jobim?

Esses artistas e suas obras fazem o mundo ser muito melhor do que seria se não tivessem existido. Suas criações fazem vibrar os sentidos e completam as necessidades humanas de lirismo e encantamento, ao ponto se elevarem à categoria de forças da natureza. Este é o lado brilhante do olhar que foca os grandes criadores e suas obras.

Porém, existe o olhar daqueles que vão além dos que se limitam a curtir livros, músicas, filmes. São os que se atrevem a escrever romances, compôr músicas, fazer cinema, teatro, dança, ciência. Aí é que o bicho pega. A genialidade dos clássicos encanta o mundo desde as gerações antigas. Se por um lado são fontes de inspiração, por outro, exercem força de intimidação e angústia porque impõem limites extraordinários, difíceis (ou impossíveis) de serem atingidos por meros mortais.

Harold Bloon analisou essa questão em “Angústia da influência”. O tema celebrizou o romance “O náufrago”, de Thomas Benhard. Na obra, os personagens entram em desespero porque não conseguem atingir o nível do pianista canadense Glen Gould, e o sofrimento termina em tragédia.

Semelhante é o dilema de quem joga futebol e tem Messi e Cristiano Ronaldo como ídolos, de quem se atira nas piscinas com a mente em Michael Phelps, de quem joga tênis e mira Roger Federer como referência, de quem educa e tem Paulo Freire como mestre na missão de ensinar.

Sem dúvida, o risco de ficar paralisado diante desses deuses da condição humana é total. Admitir a incapacidade de ser Shakespeare ou Einsten e tantos outros ícones da memória humana pode ser uma saída para o destravamento.

Tudo é processo. Nenhum desses gênios nasceu pronto, consolidado. Todos se formaram na vida, nos bares, nas aventuras, nos amores e desamores, nas obras esmiuçadas e que nas origens podem ter sido incrivelmente precárias, imperfeitas, capengas.

Machado de Assis teve que passar por “Ressurreição” e “A mão e a luva”, romances fracos se comparados às obras-primas da sua maturidade, até chegar aos romances “Memórias póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”, dos contos “O alienista”, “Missa do galo”, “Pai contra mãe”.

Imagine quantas peças Shakespeare pode ter jogado no lixo até chegar a “Otelo”, “Hamlet”, “Macbeth”, obras que entraram para a galeria das artes universais. E o dramaturgo foi tão longe que faz mais pela Inglaterra do que qualquer governo ou realeza.

Na crônica, o que fazer depois que Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto, Otto Lara Rezende, Antonio Maria e tantos outros craques que elevaram o gênero à categoria de obra de arte?

Alguém tem que escrever coisas ruins, assumir a condição de ser quem é e ao menos se resignar a servir de parâmetro de precariedade para facilitar a comparação com o alto nível das crônicas de Rubem Braga e o time de cronistas de sua geração. Eles são como os astros. Felizmente, deixaram discípulos: Veríssimo, Antônio Prata, Humberto Werneck.

Quem olha toda essa turma de grande talento pode pensar que um dia, quem sabe, a gente consiga produzir coisas boas. Se tudo é incerto na vida, por que seria diferente nas artes? E se não conseguir chegar a lugar nenhum, o que dizer? Seja como for, para quem não tem o talento dos grandes craques valem as angústias, as dúvidas, os tombos no caminho percorrido. O fracasso também é um motor da existência.

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