Triste realidade
Um novo estudo publicado pela Cambridge University Press trouxe um dado alarmante sobre o Brasil: 26% da população, ou mais de 50 milhões de pessoas, vivem sob a chamada “governança criminal”, obrigados a seguir regras impostas por facções. O conceito de “governança criminal” se refere aos processos de controle social e econômico de organizações criminosas sobre determinados territórios em que o Estado é frágil ou negligente.
Porém, o estudo desafia o senso comum de que as facções só crescem na ausência do Estado. Um dos pesquisadores argumenta que, na verdade, a forte repressão estatal — com prisões e operações — pode ser o que incentiva o crime a se organizar e “governar” um território para se proteger.
Na prática, essa “governança” impõe uma nova ordem. Um motorista de Uber de Manaus relatou que, após uma facção dominar sua comunidade, as brigas, roubos e até a violência doméstica diminuíram, pois a “organização” pune quem “atrai a polícia” para a área.
O problema é nacional. Um levantamento recente do jornal O Globo mostrou que o Brasil tem hoje 64 facções criminosas, algumas presentes em quase todos os Estados do País.
Segundo a Cambridge University Press, a “governança criminal” tem consequências enormes. Para os governados, ela pode ser simultaneamente eficaz e aterrorizante, garantindo a ordem cotidiana e os direitos de propriedade à custa do devido processo legal, da liberdade de movimento e de outros direitos. Ela molda, por natureza, tudo, desde as normas comunitárias até as eleições, o policiamento e o acesso a serviços públicos.
A pesquisa abrangeu 18 países da América Latina e mostrou que 14% dos entrevistados relataram atividades de “governança criminal” (manter a ordem, melhorar a segurança ou reduzir a criminalidade) onde vivem, com números nacionais variando de 5% a 26%. Na comparação regional, a média é de 14% da população vivendo sob domínio de facções. Depois do Brasil, aparecem Costa Rica (13%), Honduras (11%), Equador (11%), Colômbia (9%), El Salvador (9%), Panamá (9%) e México (9%).
Com base na amostragem representativa, o levantamento estima que 77 a 101 milhões de pessoas vivem com alguma forma de “governança criminal”. Os pesquisadores explicaram que “para maior robustez [do levantamento], adaptamos técnicas para reponderar dados de pesquisas sabidamente não representativos, gerando intervalos de confiança potencialmente mais representativos, totalizando 67 a 90 milhões. Essas estimativas são reveladoras: mesmo o limite inferior corresponde à impressionante proporção de uma em cada nove pessoas na América Latina” vivendo sob a governança do crime.
Para a Cambridge University Press, “o Brasil merece um escrutínio particular: seu status atípico e seu tamanho levantam preocupações de que problemas de mensuração específicos possam enviesar os totais regionais, bem como os resultados de correlação futuros. À primeira vista, as taxas de prevalência de governança relatadas são altas, mas não implausíveis: suas poderosas facções prisionais, lideradas pelo PCC, se espalharam para as periferias urbanas de todos os Estados, onde são conhecidas por dominar os moradores, controlam os crimes contra a propriedade infracomunitária e, em alguns casos, induzem ‘pacificações’ que reduzem a violência semelhante à de São Paulo. A pesquisa em si — realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística — a principal empresa nacional de pesquisa de opinião — não parece propensa a vieses generalizados de amostragem ou erro de mensuração”.
O levantamento indica que o Brasil se firmou como epicentro da atuação das facções na América Latina, com influência direta sobre a vida de dezenas de milhões de cidadãos.
O estudo rebate a ideia de que facções só prosperam em áreas de ausência do Estado. “As facções surgiram no Rio e em São Paulo, regiões de forte presença estatal. A facção mais poderosa, o PCC, nasceu no Estado mais rico do País”, aponta a pesquisa.
Os pesquisadores — Andres Uribe, Benjamin Lessing, Noah Schouela e Elayne Stecher — sustentam que os números podem subestimar a realidade, já que houve dificuldades para acessar áreas dominadas por facções. Além disso, a metodologia considera apenas atividades centrais de “governança criminal”.