Editorial
Os reflexos indiretos do endividamento
Por lei, qualquer dívida, independentemente de sua origem, pode ser cobrada judicialmente, caso o devedor não responda a alternativas para dar fim ao débito
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, no dia 10 de fevereiro, que é constitucional o dispositivo do Código de Processo Civil (CPC) que autoriza o juiz a determinar as ‘medidas coercitivas‘ que julgue necessárias no caso de pessoas endividadas.
De acordo com o entendimento do STF, pessoas que estiverem inadimplentes - ou seja, com dívidas em atraso - poderão ter apreendidos documentos como o passaporte e a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), além de ficarem impedidas de participar de concursos públicos e de licitações.
A decisão pode afetar cerca de 65 milhões de brasileiros que estão com algum débito pendente. Por lei, qualquer dívida, independentemente de sua origem, pode ser cobrada judicialmente, caso o devedor, após ser contatado, não responda a alternativas para dar fim ao débito.
Esse novo instrumento, se mal aplicado pelas várias instâncias do judiciário, pode trazer graves problemas à sociedade. O fato de a medida ser subjetiva e não especificar parâmetros claros para que seja emitida a ordem de apreensão pode gerar certa insegurança na população.
Numa mesma comarca, um juiz de determinada vara teria a possibilidade de exigir a apreensão dos documentos por conta de uma dívida de R$ 10 mil, enquanto outro juiz poderia decidir de forma contrária no caso de uma dívida de um milhão de reais. A falta de balizamento para aplicação dessa pena pode gerar sérias distorções.
O tema foi parar no STF por iniciativa do Partido dos Trabalhadores. A legenda argumentou que as medidas coercitivas previstas no dispositivo do CPC representavam um retrocesso social e deveriam ser colocadas de lado. Por isso, foi pedido que a Corte Máxima decidisse pela impugnação da norma.
A ação foi parar no gabinete do ministro Luiz Fux que, como relator, discordou da argumentação usada pelo PT e votou para que o pedido fosse negado. Ao votar pela improcedência do pedido do partido, o relator afirmou que o juiz, ao aplicar as determinações, deve ‘obedecer aos valores especificados no próprio ordenamento jurídico de resguardar e promover a dignidade da pessoa humana‘.
Para Fux, a norma é válida para que a Justiça garanta as determinações das sentenças, desde que não viole direitos fundamentais e siga os princípios de proporcionalidade e da razoabilidade. Fux disse ainda que a medida deve ser aplicada de modo menos gravoso ao executado‘.
Segundo o ministro, a adequação da medida deve ser analisada caso a caso, e qualquer abuso na sua aplicação poderá ser coibido mediante recurso.
O ministro Edson Fachin apresentou uma divergência e ressalvou que essas medidas de restrição de liberdade não deveriam ser aplicadas para os devedores que têm dívidas pendentes. A argumentação de Fux prevaleceu em plenário e o dispositivo do CPC foi considerado constitucional.
Pela decisão do Supremo, a aplicação dessa regra não é válida para todos os casos. Há exceções. As dívidas com alimentação, por exemplo, estão livres da apreensão de CNH e de passaporte. Os débitos de motoristas profissionais também ficam livres dessa punição.
O que não se sabe, até agora, é como efetivamente essa regra será cumprida. No caso da CNH, após a decisão judicial, em que momento ela deverá ser apreendida? O próprio ‘endividado‘ deverá entregá-la ou a punição só ocorre se ele for pego numa blitz e o sistema policial indicar que a Carteira deve ser recolhida?
Por quanto tempo vale essa punição? São muitas as dúvidas que não ficaram claras com a decisão do Supremo. Acreditar, única e exclusivamente, no discernimento dos juízes na aplicação da regra pode gerar certo temor na sociedade.
Diante desses fatos, é hora de o Congresso Nacional debater o tema e realizar os ajustes necessários para garantir a tranquilidade da população. Até lá, vamos torcer para que prevaleça, sempre, o bom senso.