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Editorial

Não basta lei para garantir a segurança das mulheres

Em pleno século 21 (...) muitos homens se mantêm fiéis à praxe medieval da propriedade sobre as "companheiras-escravas"

12 de Dezembro de 2021 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: Fábio Rogério / Arquivo JCS (18/10/2018))

Nosso País -- assim como a maioria das nações -- não está aparelhado para garantir às mulheres um direito básico inerente aos seres humanos, independentemente do gênero, da raça ou de qualquer outra distinção: a soberania sobre si própria. Inúmeros instrumentos legais consolidam o que a natureza preceitua. No entanto, basta uma rápida pesquisa nas edições do Cruzeiro do Sul para constatar o descompasso gritante que ainda persiste entre a teoria e a prática. Mulheres são atacadas, estupradas e assassinadas pelo simples fato de serem mulheres com uma frequência cada vez maior.

Em pleno século 21, na era da tecnologia e da comunicação instantânea, muitos homens se mantêm fiéis à praxe medieval da propriedade sobre as “companheiras-escravas” ou até mesmo de uma desconhecida escolhida ao acaso. Na ótica deturpada desses capatazes de plantão, dispor da vida da esposa ou da namorada como bem entender é algo instintivo. -- E a Lei? Podem perguntar os leitores. Lamentavelmente, na grande maioria dos casos, quando o braço da Justiça consegue alcançar esses transgressores o mal já está consolidado e as atitudes possíveis resumem-se à punição pura e simples.

Não é por falta de estatísticas, estudos, reportagens, seminários, campanhas e outras formas de alertar e mobilizar a sociedade que a violência contra a mulher não dá trégua. Na verdade, ao contrário da esperada redução das ocorrências, a sensação que se tem é de multiplicação dos crimes, incluindo aqueles de desfechos mais drásticos, ou seja, os feminicídios. Especialistas em segurança pública atribuem essa impressão justamente à conscientização das vítimas sobre a importância de denunciar as agressões sofridas e, consequentemente, à divulgação que as ocorrências alcança na mídia e nas redes sociais.

Ativistas dos direitos femininos discordam, em parte, das justificativas oficiais para o crescimento do número de episódios atentatórios à integridade física, psicológica, sexual, profissional e econômica das mulheres. De acordo com o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) -- órgão vinculado ao Ministério da Justiça --, a média mensal de boletins de ocorrência registrados nas Delegacias de Defesa da Mulher de todo o Brasil subiu 27% desde o início da pandemia de Covid-19, na comparação com os dados de 2019. Quando computadas as denúncias feitas pelos meios eletrônicos, o salto quase duplicou, passando para aproximadamente 49%.

Já o total de feminicídios confirmados em igual período de confrontação cresceu bem menos, cerca de 1%: de 1.337 em 2019, para 1.350 em 2020. Embora as cifras absolutas e proporcionais referentes aos assassinatos de mulheres por conta da sua condição de gênero não apresentem evolução significativa de um ano para o outro, a frequência com que esses crimes acontecem continua impressionando: uma morte a cada seis horas e meia. O panorama da brutalidade contra a mulher pode ser ilustrado com mais dois números capazes de envergonhar cada brasileiro de bem: uma mulher é vítima de estupro a cada 10 minutos e 30 sofrem agressão física a cada hora.

Mais preocupantes são os números referentes às medidas protetivas. Os dados do Monitor da Violência indicam aumento 13,8% nos pedidos de urgência na confrontação entre o primeiro semestre de 2020 e igual período deste ano. No âmbito nacional, houve também um aumento de 15,1% nas medidas efetivamente concedidas pelos juizes. Por fim, um contraponto alarmante: em aproximadamente 10% dos 1.350 feminicídios computados no Brasil em 2020 as vítimas estavam ou tinham estado recentemente sob medidas protetivas concedidas pelo Poder Judiciário.

Questionamento lógico diante de todos esses números que atestam a selvageria da nossa relutante sociedade machista é: por que as leis e as ferramentas criadas para proteger a mulher não funcionam como deveriam? Uma parte da resposta pode estar na fragilidade da estrutura montada para garantir o cumprimento das normas. Conforme revelado no encontro dos Conselhos Municipais dos Direitos da Mulher, realizado nesta sexta-feira (10), na sede da OAB de Sorocaba, 91,7% dos municípios brasileiros não contam com unidades da Delegacia dos Direitos da Mulher -- apenas 487 das 5.500 cidades. O IBGE amplia o ranking da desigualdade: 90,3% dos municípios brasileiros não possuem nenhum tipo de serviço especializado no atendimento às vítimas de violência sexual. Além disso, o número de prefeituras que possuem algum órgão voltado à execução de políticas para mulheres está em queda, passando de 27,5% em 2013 para 19,9% no ano passado.

Sim, a legislação que defende os direitos femininos carece de aparato policial e jurídico, entre outros, para se fazer respeitar. Mas essa é apenas metade da solução. O restante fica por conta da formação das crianças para a vida em um mundo sem preconceitos e, claro, dos exemplos permanentes dos adultos.