Consciência para um novo mundo

Ao contrário de outros tipos de revoluções, a que leva à equidade entre os seres humanos tem um único caminho: o que segue de dentro para fora de cada indivíduo

Por Cruzeiro do Sul

Atividades do Dia da Consciência Negra no ano passado.

Milênios de evolução tecnológica ainda não foram suficientes para libertar a humanidade de uma das suas mais primitivas manifestações de violência: o preconceito. O Dia da Consciência Negra, assinalado neste sábado (20) para lembrar que todos somos literalmente iguais perante qualquer lei -- terrena ou divina -- é a confirmação contundente de que ainda temos um longo caminho a percorrer antes de sermos realmente merecedores dos louros que nos autoconcedemos.

A própria existência, no Brasil, de uma data para discutir os direitos das pessoas cuja cor da pele não coincide com a pigmentação do grupo que, inexplicavelmente, se autoconsidera dominante, suscita a pergunta: por que temos o Dia da Consciência Negra?

Conforme o Dicionário Aurélio, consciência é “atributo altamente desenvolvido na espécie humana e que se define por uma oposição básica: é o atributo pelo qual o homem toma em relação ao mundo (e, posteriormente, em relação aos chamados estados interiores, subjetivos) aquela distância em que se cria a possibilidade de níveis mais altos de integração”. A mesma fonte de consulta traz definições menos filosóficas para consciência: “faculdade de estabelecer julgamentos morais dos atos realizados”; “conjunto de representações, de sentimentos ou de tendências não explicáveis pela psicologia do indivíduo, mas pelo fato do agrupamento dos indivíduos em sociedade”; e “faculdade de distinguir o bem do mal, de que resulta o sentimento do dever ou da interdição de se praticarem determinados atos, e a aprovação ou o remorso por havê-los praticado”.

Qualquer que seja a definição que se escolha para o termo consciência, está claro que o dia 20 de novembro tem um significado prático no momento em que vivemos. Instituída oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011, a data recorda a morte de Zumbi, o último líder do Quilombo dos Palmares, ponto de resistência de grupos de negros à escravidão no Nordeste brasileiro no final do século 17. Com essa conotação histórica, O Dia da Consciência Negra celebra, relembra e mantém viva a luta dos negros por seus direitos.

Não se pode negar que o Brasil tem avançado na redução das desigualdades sociais. Todavia, a questão étnica está muito mais atrelada a valores morais “e nesse ponto a falta da tal consciência é patente” do que a programas econômicos ou outras medidas governamentais. Lamentavelmente, o preconceito ainda é uma grande barreira a ser transposta.

Apesar de o Brasil ser um país miscigenado, as diferenças entre brancos e não brancos ficam bem acentuadas nas estatísticas. A taxa de analfabetismo é um exemplo da discrepância que atravessa os séculos. Em 2109, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pessoas não brancas eram maioria entre os que não sabiam ler nem escrever. Essa condição ficava mais evidente nos municípios pequenos, com menos de 5 mil habitantes, onde a taxa de analfabetismo entre brancos era de 9,8%, mas subia para 27,1% na população negra e 20% na parda.

Outro dado lamentável revelado no final de 2020 pelo IBGE é com relação à taxa de subutilização dos profissionais -- quando o trabalhador não trabalha ou trabalha menos do que gostaria. Entre pretos e pardos o índice chegava a 28%, caindo para 18% entre brancos. A desvantagem dos brasileiros não brancos se mantém mesmo quando se considera o recorte por nível de instrução: entre negros com ensino superior completo ou mais, taxa de subutilização de 15%; entre brancos, fica pouco abaixo de 11,5%.

A desigualdade se verifica também na remuneração pelo trabalho. Em todos os níveis de escolaridade, brancos recebiam mais do que negros, porém, a diferença era ainda mais acentuada na comparação dos profissionais de nível universitário: enquanto os brancos ganhavam, em média, R$ 32,80 por hora trabalhada, os não brancos desempenhando as mesmas funções recebiam apenas R$ 22,70 -- 31% a menos.

Os obstáculos para ascender aos cargos mais elevados -- e, portanto, de maior remuneração -- resumem de forma ainda mais contundente a condição inferiorizada dos trabalhadores não brancos no País. Segundo o estudo do IBGE, embora pretos e pardos sejam a maioria da população -- 56,1% --, apenas 29,9% dos trabalhadores dessas duas raças ocupam cargos de gerência. Os profissionais brancos, por sua vez, ficam com 69,9% das posições de chefia. Trabalhadores de outras raças exercem os restantes postos de direção nas empresas, cerca de 0,02% do total.

Discriminações relacionadas às questões raciais, no entanto, representam apenas a ponta do colossal iceberg formado por um sem número de intolerâncias cultivadas, adubadas e irrigadas pela ignorância nossa de cada dia. Rejeições por conta do gênero, orientação sexual, religião, ideologia, condição social, opção cultural, incapacitação funcional e aparência, entre tantas outras, confirmam a urgência de uma revisão geral de conceitos.

Ao contrário de outros tipos de revoluções, a que leva à equidade entre os seres humanos tem um único caminho: o que segue de dentro para fora de cada indivíduo. Informação, instrução e conhecimento são, evidentemente, ferramentas importantes para nos ajudar a construir parâmetros. Porém, apenas a mente e o coração de cada pessoa têm, de fato, o poder necessário para expulsar a intolerância que domina o mundo real. Cada um de nós deve aproveitar essa data para se autoavaliar e dar o primeiro passo rumo à conscientização.