‘Todos já sabem’ mostra as vísceras da família (2)
Penélope Cruz e Xavier Barden em “Todos já sabem”. Crédito da foto: Divulgação
Nildo Benedetti - [email protected]
Encerrei o artigo da semana passada dizendo que, nos filmes anteriores, Farhadi se ocupou principalmente das relações de casal. Questões familiares estavam presentes naqueles filmes, mas de forma modesta. O aprofundamento dessas relações é feito neste “Todos já sabem”, embora aqui também referências a relações de casais estejam discretamente presentes; é o caso do namorico cheio de ilusões de Irene com um rapaz que acaba de conhecer na Espanha e o desgaste das relações dos casais de meia idade, como o de Mariana e o marido.
Ambientar um filme sobre relações familiares no interior da Espanha foi uma ideia inteligente de Farhadi. Os latinos são considerados muito ligados aos familiares e uma família espanhola interiorana de atividade agrícola foi o modelo ideal para o diretor desmontar impiedosamente a instituição familiar. Tivesse o filme sido ambientado no Irã, teria aberto a possibilidade para parte da crítica -- aquela que não é pequena e que está sempre pronta a vasculhar nas entrelinhas dos filmes do diretor vestígios da degradação do Irã -- de alardear a desestruturação familiar na sociedade iraniana. “Todos já sabem” não é um filme sobre a sociedade espanhola, é sobre as relações familiares de qualquer local -- do mesmo modo que seus filmes anteriores deram ao relacionamento de casais uma dimensão universal profunda.
“Todos já sabem” também tem alguns poucos e discretos aspectos sociais: a pouca atenção prestada pelos presentes às palavras do padre, na cerimônia de casamento de Ana; o emprego, na coleta de uvas, de imigrantes estrangeiros, possivelmente refugiados ilegais, cuja presença no país revolta o indolente marido de Mariana, que alega que eles roubam o trabalho dos espanhóis.
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Um acontecimento fortuito, o rapto de Irene, estabelece uma quebra abrupta nas relações e nos comportamentos individuais dos personagens. Onde antes reinava alegria, cortesia, agora prevalecem suspeitas pelo rapto, ataques verbais, acusações mútuas, procura de culpados. Laura e Paco exibem sintomas psicossomáticos: ela passa a sentir falta de ar, como Irene sentia, e Paco adquire um tufo de cabelos brancos próximo da nuca e passa a tossir. Ao mesmo tempo, a falta de energia elétrica, a chuva e as trovoadas mudam totalmente o ambiente físico do filme durante e depois do sequestro de Irene; essa mudança é figura das mudanças profundas que ocorrerão no ambiente familiar depois do incidente.
O filme tem as doses de mistério de outros filmes do mesmo diretor, mas levanta questões universais que envolvem relações humanas. Uma questão que pode ser levantada pelo leitor é: por que introduzir um rapto misterioso que poderia levar a um assassinato, em um filme que trata de relações de família? Penso que aqui o sequestro tenha uma função definida, a de fazer emergir todos os ressentimentos, amores, ódios que se apresentam na vida familiar e que são reprimidos em nome da manutenção de uma instituição em que, tradicionalmente, deve reinar amor e harmonia.
Serviço
Cine Reflexão
“Todos já sabem”
Hoje às 19h
Fundec (rua Brigadeiro Tobias, 73)
Entrada gratuita