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Setembrinas reminiscências

22 de Setembro de 2018 às 13:41

Edgard Steffen

Amigo é coisa pra se guardar mesmo que o tempo e a distância, digam não (Fernando Brand e Milton Nascimento)

Está difícil gostar deste setembro 2018! Incêndio destrói 20 milhões de itens do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (RJ). Educação brasileira rebaixada no ranking internacional. Deslavadas mentiras e impossíveis promessas tentam engrupir o eleitor na briga pelos votos. Atentado a faca traz um friozinho na barriga dos que conhecem a História do Brasil (Pinheiro Machado, João Pessoa, Major Vaz, Carlos Lacerda). Agora, Bolsonaro.

Setembro, para nossa família, sempre foi o mês das celebrações e dos amigos. Nele comemorávamos a coincidência do Dia da Pátria com o aniversário de nosso pai. No 18/09 a celebração natalícia de nosso primogênito Edgard Júnior.

Clima ameno e chuvas anunciadoras da Primavera substituem frio, seca, queimadas e ventos de agosto. Por décadas, as folgas da Semana da Pátria me permitiam, na companhia de amigos, pescar no Rio Taquari (MS). Alguns deles já faleceram. O piscoso rio também morreu, afogado por areia e envenenado pelos agrotóxicos. Na televisão, com aperto no coração, vi o picoso Taquari transformado num corricho desabitado, fruto da insensata ganância dos que trocaram a protetora mata ciliar por pasto ou soja.

Desde a infância, pescar foi meu lazer predileto. Às reminiscências, acrescento coincidência de que meus três amigos mais antigos -- que também gostavam de pescar -- nasceram em setembro. Com o Brudi** (12/09) convivi no sítio do Capão Grande (Indaiatuba) onde armávamos arapucas, armadilhas para gambás (predadores do galinheiro), caçávamos ratos no paiol, apanhávamos borrachos* para o arroz com pombo do almoço, mariscávamos ou pescávamos lambaris para servir de iscas para traíras. Com o sobrinho/compadre Ayrton (28/09) inesquecíveis jornadas no Coxim (MS) atrás dos piaus, piraputangas, pintados, pacus e dourados. No barco poitado no meio do rio, à espera das fisgadas, conversávamos. Sobre tudo. Vida, fé, política, planos, filmes, livros ... tudo.

Ayrton, ex-diretor do Padilha, já foi pescar nas nuvens da Eternidade. Era o sobrinho mais velho do clã. O cirurgião-dentista Dr. Newton Fahl (Brudi), primo com status de irmão, desfruta saúde e descansa dos muitos anos de trabalho. Somos os últimos Steffen de nossa geração.

Eu e Áureo Cavaggioni (nascido aos 06/09) pescávamos no Rio Piracicaba. Somos amigos desde 1938. Brincamos nas ruas e quintais de Indaiatuba. Quando a vida escolar nos levou a cidades diferentes, mantivemos correspondência. Passávamos férias em Piracicaba e Indaiatuba, hospedados pelas nossas famílias, em natural reciprocidade. Formados -- Áureo, professor e diretor de escola; eu, médico -- a vida profissional e a distância geográfica nos afastaram. A amizade não diminuiu. Nos encontramos em especiais ocasiões, como nossos octogésimos aniversários, formaturas de filhos, lançamento de livros, etc.

Às voltas com a rotina de aposentado, não mais dirijo nas estradas. Áureo também não dirige mais. Sequela de poliomielite, (quase imperceptível na infância e mocidade) agravada pelas quase nove décadas vividas, restringe seus deslocamentos. Mas não deixaremos os problemas físicos limitarem os 80 anos de amizade.

No longínquo ano 1966 observei dois jovens guerreiros xinguanos abraçados. Choravam alto e copiosamente. Procurei saber a razão. Explicaram-me. Eram amigos que, num reencontro, lamentavam as oportunidades perdidas pelas muitas luas de separação.

Do Ayrton ficou a saudade. Com os sobreviventes Áureo e Brudi, haverá reencontros. Em vez do lamento, alegria. Imensa gratidão ao Eterno por nos ter permitido compartilhar boas coisas da vida. Pescarias inclusive.

Como definiu Vinícius ***. “É bom sentá-lo novamente ao lado (...) Um bicho igual a mim, simples e humano (...) Um ser que a vida não explica (...) E o espelho de minh’alma multiplica.”

(*) Borrachos filhotes de pombos, emplumados, antes de abandonarem os ninhos

(**) Brudi diminutivo de Bruder (irmão) em alemão.

(***) Vinicius de Moraes Soneto do Amigo

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve aos sábados neste espaço -- [email protected]