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Sabores e visitantes

09 de Março de 2019 às 00:01

Sabores e visitantes Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Não sou saudosista. Sou um guardador de lembranças.

(Mario Lago)

Para escrever este relato, cavouquei nos escaninhos da memória lembranças desimportantes. Marcantes apenas para quem as viveu. Dos 3 aos 7 anos, morei com meu pai na fazendola de meus tios Martha e Carlos Oscar Fahl. Em minha formação de menino, vivenciei gente simples, trabalhadora e profundamente cristã. Época em que estive mais perto de meu pai e convivi com meu primo Brudi (Newton). Quis a Providência, no ginasial e colegial voltasse a morar com meus tios. Brudi, na prática meu irmão, era colega de classe. Para que nossos descendentes entendam por que guardamos tantas reminiscências daquele lugar, publico trilogia de crônicas.

A vida no Capão Grande começava cedo. Lá pelas seis da matina, começando a clarear, alguém acendia o fogão a lenha, enquanto meus tios desciam ao curral para a ordenha da manhã. Quando havia algum visitante -- posso acrescentar quase sempre havia um -- ele descia com a caneca com açúcar e canela para saborear leite gordo, espumoso e quentinho, tirado na hora.

No desjejum, produtos do próprio sítio. Café com leite, pão caseiro ou broa, manteiga, nata, mel e schwarzer honig (mel preto). Não gostava daquele sabor amargo de mel queimado. Penso que era subproduto na fabricação das bolotas de cera, usadas na conservação do cordame e das linhas de costura.

Refeições eram preparadas, sempre com banha, em panela de ferro. Na grande mesa da sala, antes de saboreá-las, cabeças se curvavam em prece de agradecimento ao pão de cada dia. Cardápio frugal. No almoço, alguma verdura, legumes, batata ou mandioca, arroz com feijão e mistura. Nesta classe, speck (toicinho) simples ou defumado, ovo estalado, linguiça ou pedaço de carne conservada em latas de gordura de porco. Aos domingos frango ou galinha e macarrão.

Não me lembro de chucrute, salsicha, einsbein e outros pratos típicos da cozinha alemã. No dia da matança do cevado, havia o schwartz-sauer -- mingau escuro, quase preto, com pedaços de vísceras suínas. Servido em prato fundo, era chouriço sem embutir.

Na sobremesa, goiabada ou doces de abóbora, polpa de laranja, mamão, cidra, amora, curau. Menos frequente, frutas como sobremesa. Talvez porque o consumo fosse livre, ainda que disciplinado. Muita variedade -- laranjas, mexericas, mangas, goiaba, jabuticaba, pera e nespera, mamões, banana-nanica, uvas, limão doce, lima-da-pérsia e outras que me fogem à memória.

No jantar, caldos. Além da sopa de feijão ou legumes, comuns aquelas à base de leite ou soro (leitelho). Leite com farinha de milho e melado ou arroz, aveia, sagu cozidos no leite. Muito comum a klempsoup* com bolotas parecidas com nhoque e o rotgritz* -- leite com sagu colorido. A cor derivava de amora, vinho tinto ou pétalas de uma flor a que chamavam marmelinho.

Além dos parentes e amigos, visitas. Muito raras, recebidas com reserva, lembro-me de ciganos tentando vender tachos de cobre e entabular algum negócio com os muares e equinos. Periódico era o frangueiro José Boccia e da carroça cheia de coisas que a roça não tinha. Utilidades, tecidos e armarinhos. No escambo levava ovos, frangos e legumes ou frutas. Eventuais eram profissionais leigos que faziam as vezes de veterinários e tratavam animais, castravam porcos e reses. Também tropeiros e açougueiros buscando comprar garrotes ou porcos. Os visitantes que chegavam de carro, geralmente para negócios com a safra, eram recebidos com maior cerimônia.

Tio Carlos Oscar, muito organizado, tinha controle total sobre o que comprava ou vendia na propriedade. A escrivaninha com tampa corrediça retrátil ficava na sala de visita, ao lado do jogo estofado, mesinha de centro e uma escarradeira de porcelana. Linda de cuspir!

Carro de praça trouxe corretor e dois loiros altos e vermelhões. Reuniram-se a portas fechadas. Depois, quando se sentaram à mesa para o café com kuchen e keks, Tio Oscar mandou chamar o filho. -- Brudi, fizeram uma oferta pelo Capão Grande...

(*) Por não encontrar o verbete no dicionário alemão, transcrevo o som..

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul - [email protected]