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Reduzir salários: uma medida incoerente e inconstitucional

28 de Março de 2020 às 00:01

Rafael Neubern Demarchi Costa com Renato Kim Barbosa

A OMS (Organização Mundial de Saúde) declarou, no dia 11 de março de 2020, a existência de pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) (1), que causa a doença denominada Covid-19. Para conter o avanço exponencial da epidemia e, por consequência, evitar um colapso no sistema de saúde -- que não suportaria uma demanda altíssima de internados notadamente em unidades intensivas --, já estão sendo adotadas medidas extremas. Em São Paulo, por exemplo, foi publicado o Decreto 64.881, de 22 de março e 2020, determinando-se a quarentena, vale dizer, o isolamento social. Com a paralisação de todas as atividades consideradas não essenciais, é inegável afirmar-se que serão -- e já estão sendo -- afetadas, de modo direto e indireto, as economias local, regional e nacional. Para o enfrentamento da crise econômica, há diversas propostas pululando na imprensa e nas mídias sociais. Uma que chama a atenção, por sua incoerência e flagrante inconstitucionalidade, é a redução de salários, tanto na iniciativa privada quanto no setor público. Todos os outros países que enfrentam o novo coronavírus, inclusive com antecedência de algumas semanas e até meses, não propuseram medida tão draconiana. Explica-se: a redução de salários ou vencimentos prejudica a própria economia, ao invés de favorecê-la, porque subtrai ainda mais dinheiro de circulação, agravando a recessão. Trata-se de princípio basilar da Economia, e, por esse motivo, nenhuma nação, com exceção do Brasil, cogitou fazê-lo. Pelo contrário, países europeus possuem planos de incremento da economia, introjetando mais dinheiro -- em vez de tirá-lo --, conforme relata o presidente do Sindicato do Ministério Público de Portugal, Antônio Ventinhas (2). Além dos argumentos econômicos, que, por si só, já demonstram a incoerência da redução de salários, percebem-se flagrantes inconstitucionalidades em tal medida. Os arts. 7º, caput, inciso VI, e 37, caput, inciso XV, da CF (Constituição Federal) garantem a irredutibilidade de salários, vencimentos e subsídios. Essas disposições não podem ser alteradas ao bel-prazer do constituinte derivado, uma vez que tratam de direitos fundamentais -- alimentos, subsistência etc. -- e, por esse motivo, são cláusulas pétreas. A CF é expressa ao dispor que “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [à] os direitos e garantias individuais” (art. 60, º 4º, inciso IV). Assim, o constituinte derivado, em respeito ao determinado pelo constituinte originário, não pode extirpar do texto magno direito ou garantia individual -- e a irredutibilidade de salário ou subsídio, apesar de seu caráter social, não deixa de ser direito individual. E não é só: em seu art. 150, caput, inciso IV, a CF também proíbe o confisco por meio de tributos. Com efeito, qualquer medida tendente a reduzir salários ou vencimentos, ainda que travestida de nomenclatura diversa, possui efeito confiscatório -- cuja existência é proibida de modo expresso pela Constituição. “Redução”, “contingenciamento”, “corte” e outros termos denotam a mesma finalidade, que é o confisco de bens -- no caso sub examine, o salário, os vencimentos ou o subsídio. De outra banda, convém lembrar que a própria CF prevê medidas para tempos de crise. Sabe-se que no Brasil há aproximadamente 700 mil cargos comissionados (3), os quais não demandam concurso público. Em caso de excesso com despesa com pessoal, o artigo 169, º 3º, inciso I, da CF determina a “redução em pelo menos vinte porcento das despesas com cargos em comissão e funções de confiança”. Há muitas medidas ainda não implementadas, como a regulamentação da avaliação periódica dos servidores públicos, a perda do cargo daqueles que apresentarem insuficiência de desempenho (arts.41, º 1º, inciso III, e 247, parágrafo único), entre outras. Mais a longo prazo, outras economias podem ser obtidas, nos termos do texto constitucional -- por exemplo: redução dos percentuais de gastos permitidos pelas Câmaras de Vereadores (art. 29-A), padronização das custas dos serviços forenses (art. 24, caput, inciso IV) e adoção de critérios objetivos para concessão de assistência jurídica gratuita (art. 5º, caput, inciso LXXIII), evitando “aventuras judiciais” e diminuindo seu impacto no orçamento público. O incremento da receita poderá vir também com a reformulação da Lei de Execuções Fiscais (Lei 6.830/1980), permitindo que o Estado seja mais efetivo na cobrança de seus devedores. Com a lei atual, os entes têm índices de recuperação baixíssimos, inferiores a 2% (dois porcento). Não se pode olvidar, outrossim, do imposto sobre grandes fortunas, previsto no art. 153, caput, inciso VII, da CF, mas até hoje ainda não implementado. De modo mais imediato, os entes também podem se valer de Fundos de Combate e Erradicação da Pobreza, obtendo rendas da sobretaxação de produtos e serviços supérfluos (arts. 79 a 82 do ADCT). O Estado de São Paulo, por exemplo, após sobretaxar o ICMS de cervejas e cigarros, tem cerca de R$ 1 bilhão em caixa em seu Fundo Estadual de Combate à Pobreza, aguardando destinação (4). É possível, do mesmo modo, cogitar a utilização do bilionário Fundo Partidário, considerando, além de outros argumentos, que muito provavelmente as eleições municipais deste ano restarão prejudicadas. Porém, não obstante toda essa gama de possíveis soluções, a própria CF previu expressamente um mecanismo para a União angariar recursos objetivando atender despesas extraordinárias decorrentes de calamidade pública: trata-se da instituição, mediante lei complementar, de empréstimos compulsórios (art. 148,caput, inciso I). Ou seja, há instrumento jurídico próprio, sem necessidade de e incidir em ilicitude, previsto exatamente para situações como a vivenciada hodiernamente. Como se vê, reduzir salários ou vencimentos não é a solução, pois agravaria ainda mais a crise econômica decorrente da pandemia do novo coronavírus. Sem contar, principalmente, a flagrante inconstitucionalidade de tal medida, que vai na contramão de todas as nações civilizadas. A crise com certeza passará, mas eventuais arbitrariedades não.

(1) 3 https://www.paho.org/bra/index.php?option= com_content&view=article&id=6120: oms-afirma-que-covid19-e-agora -caracterizada-como-pandemia&catid= 1272&Itemid=836

(2) https://www.apmp.com.br/noticias/o-coronavirus-a-crise- economica-e-os-servidores-publicos/

(3) http://www.ipea.gov.br/atlasestado/consulta/133

(4) https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano /2019/11/governo-doria -tem-mais-de-r-1-bi-engavetado- para-ocombate-a-pobreza.shtml

Rafael Neubern Demarchi Costa, procurador do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo. Procurador-Geral do Ministério Público de Contas nos biênios 2015-2016 e 2017-2018. Especialista em Direito Público pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Mestrando em Direito Econômico-Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Atuou como Agente da Fiscalização no Tribunal de Contas do Município de São Paulo (2007-2012). Atuou como secretário executivo e vice-presidente do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Contas (CNPGC). Atuou como diretor da Associação Nacional do Ministério Público de Contas (AMPCON).

Renato Kim Barbosa, promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. 1.º tesoureiro da Associação Paulista do Ministério Público (APMP), biênios 2017-2018 e 2019-2020. Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito Administrativo.