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Qual o impacto da infecção de Trump pela Covid-19 para o multilateralismo?

21 de Outubro de 2020 às 00:01

Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro

O fato do presidente estadunidense, Donald Trump, ter sido infectado pelo vírus da Covid-19 repercutirá em um maior enfoque para o tema da pandemia durante a reta final das eleições nos Estados Unidos da América (EUA). Algumas horas após Trump anunciar “the coronavirus pandemic is ending”, ou seja, a pandemia do coronavírus está terminando, uma assessora muito próxima do presidente, Hope Hicks, desenvolveu sintomas durante um comício no dia 30 de setembro. Trump e a primeira-dama, Melania, revelaram horas depois que testaram positivo para a Covid-19. Além da falta de seriedade na condução da pandemia durante o seu governo, houve o anúncio de que os EUA se retirariam da Organização Mundial da Saúde (OMS).

No entanto, o trâmite jurídico necessário para a retirado do tratado internacional, denominado Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) é a denúncia. Os EUA são membros da OMS desde o seu início, realizaram a assinatura do tratado em 22 de junho de 1946, o ratificaram pelo Senado, em 14 de junho de 1948, sendo depositado junto ao secretário-geral das Organização das Nações Unidas (ONU) em 21 de junho do mesmo ano. Deve ser observado que para a ratificação do tratado, os EUA impuseram algumas condições, como aviso prévio de um ano para se retirarem, e o cumprimento das obrigações financeiras.

É importante recordar que a ONU foi criada no contexto da teoria do liberalismo liderada pelo presidente estadunidense, Franklin Roosevelt, em que havia apoio da sociedade internacional para a construção de um mundo multilateral. A primeira tentativa havia sido com a Liga das Nações, depois da Primeira Guerra Mundial, em 28 de julho de 1919, instrumentalizada pelo Tratado de Versalhes. Idealizada pelo presidente estadunidense, Woodrow Wilson, em 1918, em seus 14 pontos para a paz, a Liga foi um importante precedente, ainda que os próprios EUA nunca tenham sido parte, e a ocorrência da Segunda Guerra Mundial na sequência tenha explicitado algumas de suas debilidades.

É relevante analisar o liberalismo na ideia de que o livre comércio sem o protecionismo dos Estados fomentaria um cenário favorável para a manutenção de uma paz mundial. O multilateralismo corroboraria para a maior interdependência dos Estados de modo que ao tratarem de temas como segurança coletiva, direitos humanos, meio ambiente e refugiados no âmbito da ONU uma ordem mundial seria construída sob a égide de novos pilares. No pós-guerra, os EUA saíram como a grande potência mundial que orquestrava, juntamente com outras potências, organismos internacionais multilaterais.

No início do ano, Trump fazia críticas ao fato da OMS ser influenciada pela China para dar direcionamentos equivocados acerca da Covid-19. No dia 29 de maio foi anunciado o rompimento de relações com a OMS. O Departamento de Estado dos EUA informou ter enviado o pedido de denúncia para o secretário-geral da ONU, sendo que a ONU confirmou o seu recebimento. Não obstante o duro posicionamento de Trump com relação à OMS, faz-se mister ressaltar que embora a contribuição financeira dos EUA seja maior, trata-se de uma organização multilateral com representatividade de todos os Estados membros que a constituem.

O estado de saúde do presidente Trump, na condição também de candidato à reeleição deve ser observado. O favoritismo do seu opositor, o candidato democrata, Joe Biden, pode trazer novos ares para o sistema multilateral da ONU. Lembrando que a ONU aumentou os gastos após a Guerra Fria, e os EUA são o Estado que mais contribuem para a organização. Além das críticas de Trump à OMS, a invasão do Iraque pelos EUA, em março de 2003, à revelia do Conselho de Segurança, demonstrou um desgaste para a organização. O resultado das eleições nos EUA demandará minuciosa análise para os seus impactos no multilateralismo.

Profa. dra. Carmela Marcuzzo do Canto Cavalheiro -- Universidade Federal do Pampa (Unipampa), câmpus Santana do Livramento (RS), área de Direito Internacional -- é doutora pela Universidade de Leiden/Países Baixos