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Privatização do xis da questão

05 de Novembro de 2020 às 00:01

Ricardo Carrion B. Alves

Muito se falou nos últimos dias sobre a tal da “privatização do SUS” promovida pelo Governo Federal. Este é mais um exemplo de debate que, infelizmente, se mostrou refém da polarização ideológica e da ansiedade crônica da contemporaneidade. Proponho aqui uma inflexão na maneira de enxergar a questão e então -- apenas então -- uma reflexão sobre o que ocorreu.

Primeiramente os fatos. O presidente da República assinou decreto que inseria o setor da saúde na agenda do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), visando a modernização e operação de Unidades Básicas de Saúde (UBS) em todo o País. Traduzindo do burocratês, significa que o Executivo queria entender se novos tipos de contratação na área da saúde cabem no seu bolso e se produzem melhorias em relação aos modelos atualmente utilizados. Este tipo de estudo complexo exige conhecimentos especializados e o manejo de dados sensíveis. Por isso são realizados por um órgão específico dentro do governo. Este decreto foi ao final do dia revogado pelo presidente, após ceder às pressões classistas.

Mais fatos. O modelo das parcerias público-privadas (PPP) permite ao Governo a contratação, após leilão, de um único agente para a construção e operação dos serviços durante prazo determinado em contrato (geralmente 30 anos). Ao invés de concursos públicos para contratação de pessoal e de licitações para a construção de UBS e compra de insumos, firma-se um contrato com um parceiro para toda a gestão do equipamento, que é fortemente fiscalizado e remunerado através de seu desempenho. Aumento das filas? Atraso em exames? Tudo isso resulta em descontos no seu pagamento, criando incentivos para a boa prestação do serviço.

Não é necessário ir muito longe para atestar que estes estudos não seriam fruto de uma criatividade perigosa! O novo Hospital Regional de Sorocaba, do governo paulista, é gerido através de PPP, na qual o parceiro, além de construir toda a infraestrutura hospitalar, tem de gerir os serviços não clínicos como recepção, limpeza e almoxarifado. Os clínicos ficam com organização social contratada pelo Estado.

Ironicamente, dois outros casos de sucesso ocorreram em governos petistas da Bahia. Em um deles a holandesa Philips opera serviços de imagem e diagnóstico para hospitais estaduais. Em outro, parceiro gerencia o Hospital do Subúrbio, que já recebeu até premiação na ONU e custa 10% menos do que as unidades convencionais.

Agora, a reflexão. Uma privatização nada mais é do que a venda de um ativo público, seja uma empresa ou um edifício. Será que é mesmo este o caso? Através do modelo de PPP na saúde os serviços continuam completamente públicos e gratuitos à população, alterando-se apenas a forma como estes são geridos pelo Estado em relação ao modelo convencional, mais fiscalizador do que operador.

As PPP não são balas de prata para os problemas públicos, pois demandam preparo e pragmatismo. A utilização do modelo em estruturas descentralizadas, como as UBSs, imporia obstáculos à viabilidade de uma PPP, pois é na sinergia operacional que eficiências são geradas. Porém, temos atualmente no Brasil 4 mil UBSs com obras inacabadas e o cenário de restrição fiscal não permitirá sua finalização em tempo razoável. Será mesmo que não valeria a pena estudar um método diferente para dar vazão a estas obras?

Neste caso, falar em “privatização do SUS” é, antes de mais nada, tirar conclusões precipitadas. Ignora a realidade objetiva e, no fim do dia, dificulta o acesso da população ao SUS. Enquanto a melhoria dos serviços públicos for confundida com mais ou menos presença do Estado, narrativas políticas continuarão a atrapalhar a gestão pública eficiente e inovadora. Na falta de compromisso do presidente com as propostas de seus subordinados, apenas a qualificação do debate público pode reverter este quadro.

Ricardo Carrion B. Alves é assessor na Unidade de PPPs do Governo do Estado de São Paulo e mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV.