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Precipitação

01 de Dezembro de 2018 às 00:01

Precipitação Crédito da foto: Vanessa Tenor

Aldo Vannucchi

Toda decisão de uma autoridade provoca sim e não. Há quem acata e cumpre, mas há também os que a engolem sem digerir. No mundo político, mais ainda. Foi o que se viu com a ordem baixada para suspender o Programa Mais Médicos. Do lado de cá, foi porque esses profissionais precisariam passar por um “teste de capacidade”, ganhar salário integral e ter liberdade para trazer suas famílias. Do lado de lá, repudiou-se o conteúdo e o tom do comunicado draconiano e, de pronto, veio a ordem terminante de abandonar a empreitada por aqui.

As consequências desse fatídico desentendimento todos conhecemos. Vimos, de repente, a nossa saúde pública ainda mais desassistida e, de outro lado, milhares de médicos feridos de frustração e jogados a um futuro incerto, sem falar no aprofundamento de um desnecessário confronto cultural entre dois países. Não vou ficar no agora Inês é morta. Atitudes saneadoras precisavam ser tomadas com urgência, e foram, mas uma lição fundamental paira no ar: quem governa tem de pensar bem antes de agir.

Bastaria a sabedoria popular dos nossos provérbios para confirmar essa norma, pois quem depressa resolve depressa se arrepende; quem anda depressa é que mais tropeça e se sabe que a pressa é inimiga da perfeição. Mas vale ouvir também um filósofo campeão nesse cuidado em tomar decisões. Refiro-me a Descartes, cujo conceito nuclear foi evitar toda precipitação ao analisar um assunto e só ter por verdadeiro o que for pensamento claro e distinto. E ele explica: “Denomino claro o que é presente e manifesto a um espírito atento... e distinto o que é de tal modo preciso e diferente de todos os outros”.

Ao encerramento abrupto do Mais Médicos faltou, precisamente, clareza e distinção, prevaleceu a precipitação, a irreflexão, o açodamento, a afobação. Deveria ser estudado, antes, o conceito do Programa, para não se cair, sem análise crítica, no preconceito que o circunda. Mas essa clareza e distinção acabaram ofuscadas pela ideologização do tema. Alegando a origem e a forma ditatorial do Programa, nosso Presidente eleito apelou, igualmente, para uma medida odiosamente autoritária. Aqueles 8.300 médicos e os seus rotineiros serviços comprometeriam, de fato, o seu projeto político?

Tudo foi decidido num ímpeto. Parecia de extrema urgência expulsá-los, como se fossem uma frota invasora, em clima de guerra. Sumiram, assim, os interesses prioritários dos que mais sofrem e que mais precisam de atendimento médico, nos pequenos municípios, na periferia das grandes cidades, nos sertões, na Amazônia, no Brasil profundo, enfim.

Essa grave inabilidade diplomática preocupa. Concretizou o que é, literalmente, a palavra precipitação, uma queda de cabeça para baixo, como a lembrar um corpo mirando um precipício. O relacionamento do Brasil com qualquer outro país do mundo tem que ser de nação estável, de cabeça para cima, com inteligência e descortino, para ser claro nos seus princípios nacionais e distinto do perfil político dos outros povos. Da mesma forma, a quebra do bom relacionamento da nossa população com aqueles profissionais e estrangeiros foi lamentável precipitação.

Precipitação certa e bendita só mesmo a meteorológica, que nos fornece a água doce do planeta, com a chuva, o granizo e a neve.

Aldo Vannucchi é mestre em Filosofia e Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma e licenciado em Pedagogia. Autor de diversos livros, foi professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Sorocaba (Fafi) e reitor da Universidade de Sorocaba (Uniso) -- [email protected]