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Perto da doença, longe do doente

31 de Agosto de 2019 às 00:01

Perto da doença, longe do doente Crédito da foto: Pixabay

Edgard Steffen

Deus nos deu ouvidos para ouvir; usem suas orelhas e não um estetoscópio.

(Recomendação de um professor de medicina, 1885)

Projeto compartilhado entre a Unimed e a Sociedade Médica de Sorocaba trouxe para o Auditório do Cruzeiro do Sul o Dr. Antônio Carlos Endrigo, Diretor de Tecnologia de Informação da APM (Associação Paulista de Medicina). Numa exposição clara e didática, Dr. Endrigo conclamou-nos a pensar sobre “O Futuro da Medicina -- Telemedicina e Saúde Digital”.

Orientar pelo telefone, nas intercorrências e às dúvidas surgidas no tratamento dos pacientes, sempre fez parte do escopo da prática médica. Pediatras, especialmente, socorrem mães desarvoradas e inseguras diante de pequenos desvios, reais ou imaginados, da normalidade em seus bebês. Lembro-me das palavras do Prof. Eduardo Marcondes ao responder se era lícito o pediatra atender suas pacientes pelo telefone. Peremptório, enfatizando os verbos, o professor de Pediatria da USP, afirmou -- Não somente pode, como deve atender àquelas consulentes que levaram recentemente seus bebês ao consultório. O que pra nós pediatras é banalidade, pode ser causa de grande angústia e temor para nossas interlocutoras. Óbvio que o bom senso deve estar ligado.

Esse ato banal nada tem a ver com telemedicina. Esta, veio para ficar. Coexistir com a prática médica presencial. O permitido e o vedado variam conforme os Conselhos de Medicina. Esvaziará gargalos dos sistemas de saúde, agilizando a atenção à demanda reprimida. Esta novidade -- ligada à rede internética de altíssima velocidade e à IA (inteligência artificial) deverá alterar substancialmente a prática médica em todas as latitudes e longitudes. O paciente pode ser examinado à distância e as dúvidas diagnósticas do profissional dirimidas de imediato por teleconferência. Por exemplo, orientada pela telinha de um tablete ou similar, a mãe colocará dispositivo -- pouco maior que uma moeda de R$ 1 -- nos focos cardíacos ou pulmonares da criança, permitindo a ausculta dos sinais vitais do paciente e ensejar diagnósticos tão (ou mais) precisos que os presenciais. É a medicina do futuro acontecendo no presente. Ignorá-la poderá levar à fossilização dos renitentes ou falência dos obsoletos sistemas oficiais de saúde.

Lembro-me do Dr. Carlos Prado, primeiro professor de Pediatria da Faculdade de Medicina de Sorocaba. Nas aulas teórico-práticas examinava crianças encostando o ouvido no tórax. Dispensava a intermediação de estetoscópios. Desconfio que os utilizasse em seu consultório.

A visão do velho professor brasileiro reporta-me àquele que ilustra esta crônica. Até o fim do século 19, médicos encostavam um de seus ouvidos ao tronco do paciente para ouvir ruídos cardíacos ou respiratórios. O médico e marceneiro francês René Laennec foi quem inventou o estetoscópio. Em 1816 precisava examinar paciente obesa. Considerado o desconforto e pudor, tanto dele quanto os da moça com grandes mamas e adiposidade, teve ideia de evitar a escuta direta, colocando um cilindro de papel laminado entre o tórax da paciente e seu ouvido. Descreveu: “Então, eu não só solicitei um laminado de papel em uma espécie de cilindro, como também apliquei o final do mesmo na região do coração e a outra extremidade no meu ouvido, e fiquei surpreso e satisfeito ao descobrir que eu podia, assim, perceber a ação do coração de uma maneira muito mais clara e distinta do que se eu alguma vez tivesse sido capaz de fazer isso pela aplicação imediata de meu ouvido” (Prefácio de De l’Auscultation Médiate -- 1819 -- in Wikipedia). Posteriormente, usando sua habilidade artesanal, Laennec construiu um cilindro oco de madeira com 25 cm de comprimento.

Muitos professores da época rejeitaram o invento do médico francês. Um dos argumentos foi o de que afastava o médico de seus pacientes.

Qual seria a reação deles, hoje?...

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor - E-mail: [email protected]