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Perdidos na Noite

24 de Novembro de 2018 às 00:01

Perdidos na Noite Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Somente o peru morre na véspera. (Dito popular brasileiro)

Tem um que escapa todo ano. Quem apostou que o empavonado Trump quebraria a tradição, perdeu. Perdoou Carrots e Peas, aves enormes de brancas penas em leque. Os perdoados passearam pelos gramados da Casa Branca antes de serem recolhidos à segurança de uma fazenda na Virgínia. Tudo filmado e fotografado para os jornais, nas vésperas do Dia de Ação de Graças.

Para os americanos este é o maior feriado. Reúnem a família seja ela protestante, católica, judia ou não professe crença alguma. Na refeição principal, peru assado enche a mesa, os olhos e o bucho do grupo. Data e cardápio remontam aos peregrinos do Mayflower. Quando chegaram a Nova Plymouth, fizeram acordo com o cacique Massasoit e os wampanoags. Os índios lhes deram sementes de milho e os ensinaram a plantar. Também treinaram os brancos na caça a perus selvagens. A primeira safra de milho foi muito boa e os peregrinos tornaram-se exímios caçadores de perus. A comunidade resolveu agradecer ao Eterno a boa colheita e convidou os nativos a participarem da festa. Perus, o prato principal. Nasce daí a tradição gastronômica.

Se você ler textos em inglês, lembre: Turkey grafado com letra inicial maiúscula refere-se ao país Turquia; grafado com minúscula, turkey é a ave Meleagris gallopavo, vulgo peru. Nativo do México e Estados Unidos, foi levado à Inglaterra. Alguém achou que viera da Turquia, e o nome “pegou”. Os países de língua portuguesa também confundiram a origem e usaram nome do país andino para designá-lo. Pode não ser verdade mas, se a estória diverte, publique-se.

Resolvo consultar o Houaiss. O verbete tem nove significados. Desde ave que faz glu-glu, número 20 e dezenas 77-78-79-80 no Jogo do Bicho, passando pelo palpiteiro importuno, espião no jogo de cartas, namorado ridículo, até chegar no popular calão para designar o órgão copulador masculino.

Perua tanto pode ser a fêmea do dito-cujo como referir-se a mulher que se dá ares de elegante, mas se veste espalhafatosamente (sic). Também pode designar tipo de veículo automotor.

Procuro “peruada” e o dicionário me informa da inexistência do verbete. Arrisco definir -- (subst. fem.) desfile cômico que precedia o fim dos trotes nos calouros das universidades brasileiras. Uso o verbo no passado; o trânsito atual as impossibilita.

Em Sorocaba, a primeira peruada foi organizada pelo Centro Acadêmico Vital Brasil. Numa noite de maio de 1954, saiu da sede da Rua Capitão José Dias.

Regada a chopes e destilados, circulou ao som de barulhenta charanga até dissolver-se no Largo do Canhão.

Meros expectadores, eu e João subíamos a Quinze comentando o desfile. Na Leite Penteado, na sarjeta, calouro vomitava aos borbotões. Não conseguia parar em pé. Resolvemos levá-lo a uma farmácia. O ilustre boticário ministrou-lhe glicose, dramin e coramina. As ruas já estavam vazias (a farmácia cerrara as portas, mas nos deixara dentro) quando o jovem apresentou melhoras.

Sabíamos que morava longe. Este farisaico escriba queria colocá-lo num táxi. Fosse sozinho para casa. O bom samaritano e obstinado João insistiu que fôssemos junto para ter certeza de que o borracho chegaria incólume ao lar. Por gratidão, talvez pagassem o táxi até nossas respectivas repúblicas.

A casa era bonita. A cara de quem atendeu, feia. Furibunda. Saudou-nos a repreensão -- Vocês não têm dó nem vergonha de levarem “...inho” a esse estado?! Não soltou impropérios porque era gente educada. Mas que os olhos fuzilavam, fuzilavam.

Orelhas murchas, pagamos o motorista e voltamos a pé para nossas habitações. Cansado e preocupado com o perigo de andar na madrugada, eu buzinava nos ouvidos do amigo. -- Eu não disse que era pra deixá-lo sozinho?!

Entre motivos de Thanksgiving incluo os amigos que fiz. Dr João de Campos Aguiar Filho, entre eles. Nascido no palindrômico 23-11-32, continua rimando bondoso com teimoso. Também continua amigo e compadre. Peruei este episódio para cumprimentá-lo pelo aniversário. Parabéns!

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve aos sábados neste espaço -- [email protected]