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‘Parasita’ desbancou a decupagem clássica

27 de Março de 2020 às 00:01

João Alvarenga

A priori, há uma crise de criação artística que afeta diretamente o setor de audiovisual (leia-se: novelas, filmes e séries), algo que se evidencia pelo desgaste das fórmulas hollywoodianas, pois se mostram repetitivas. Aliás, Walter Benjamin, da Escola de Frankfurt, já chamava a atenção sobre essa problemática na era da reprodutibilidade técnica. Hoje, temos a impressão de que tudo já foi visto, por mais que uma cena pareça “original”, sempre ficamos com a sensação de que não passa de um mero pastiche, ou seja, a cópia da cópia da cópia, de algo que se tornou kitsch.

No entanto, nem tudo está perdido, pois ventos asiáticos sopraram sobre a cerimônia de entrega do Oscar deste ano, revelando uma surpresa: “Parasita”, montagem sul-coreana dirigida pelo cineasta Bong Joon-ho, que desbancou megaproduções hollywoodianas cotadas para conquistar todas as honrarias. Detalhe: é a primeira vez que um filme produzido fora dos limites da Califórnia, falado em outro idioma, conquista a estatueta de melhor filme, além arrebatar as categorias de melhor roteiro, direção e filme estrangeiro.

Embora Hollywood não admita, tal premiação foi uma tentativa de agradar a um público cada vez mais exigente. Traduzindo: muitos estão cansados da velha decupagem clássica, ou seja, não têm mais estômago para digerir enredos com desfechos previsíveis ou, então, acompanhar filmes com excessos de efeitos especiais, com carros que explodem, em alta velocidade, mas que, no fundo, são narrativas vazias, com começo, meio e fim.

Aliás, os estúdios norte-americanos sempre souberam manipular muito bem essas ferramentas; afinal, depois de tantas décadas de dominação cultural, tornaram-se referências para o mundo da sétima arte. Tanto que, no dizer do saudoso professor e cineasta Paulo Schettino, os roteiristas yankess “doutrinaram” o olhar humano. Não é exagero admitir que muitos brasileiros não conseguem entender montagens que fujam do padrão hollywoodiano. Nesse cenário, a festejada produção chinesa “O tigre e o dragão”, do início deste século, gerou frustrações, pois o público se confrontou com elementos culturais adversos aos que estavam acostumados, além de encarar uma narrativa que exigia mais do que mera leitura das legendas.

Todavia, não é a primeira vez que diretores fogem ao paradigma estético sedimentado pela indústria cultural. As produções italianas e francesas, do século passado, tiveram grande aceitação em nossas salas; porém, infelizmente, andam esquecidas. Assim, as novas gerações desconhecem as surpreendentes comédias do diretor italiano Federico Felline ou as provocações do francês Jean-Luc Godard. Ou, então, a autêntica emoção das películas de Vitório de Sica.

Para não ser injusto com “Tio Sam”, relembro o polêmico “Beleza americana”, produzido pela Warner Bros, em 1999. Na verdade, foi uma tentativa isolada do roteirista Allan Ball de romper com um modelo extenuado. O “novo formato” conquistou cinco estatuetas, inclusive, de melhor filme, mas não deixou legado. Os mais atentos notaram o modo machadiano de contar histórias: um defunto retorna para narrar suas memórias. Aliás, “Memórias póstumas...”, adaptado à telona, em 2001, por André Klotzel, foi agraciado com vários “Kikitos” (nosso Oscar tupiniquim).

A fim de concluir, relembro os árduos anos do saudoso estúdio Vera Cruz (primo pobre do ideal americano), para observar que, em muitos momentos, seus diretores caminharam na contramão do formato estadunidense, tanto que Mazzaropi, na pele de um caipira, arrebanhava multidões de fãs aos cinemas. Assunto da próxima quinzena: telenovela, fórmula gasta?

João Alvarenga é professor de Língua Portuguesa, mestre em Comunicação e Cultura, produz e apresenta, com Alessandra Santos, o programa Nossa língua sem segredos, que vai ao ar pela Cruzeiro FM (92,3 MHz), às segundas-feiras, das 22h às 24h.