Padre Arnaldo e dona Ramona
Neusa Gatto
Padre Arnaldo e dona Ramona eram quase seres extraterrestres na mente da garotinha. Mal se podia olhar pra eles. Sempre bravos. O padre Arnaldo, um polonês careca, com batina curta e passos largos era a grande autoridade da vila. Dona Ramona, a professora de catecismo, magra, com óculos grandes e roupas escuras, era a imagem da sisudez. Solteira e muito religiosa. Às cinco da tarde, tava lá, na igreja, pras aulas de catecismo. Sem as aulas, nada de primeira comunhão. Então, aos trancos e barrancos a garotada ia.
Sentada entre outras crianças, ela vasculhava a igreja. Os santos que olhavam pra baixo. Os que olhavam pra cima. As roupas. Azul clarinho na Virgem Maria. Vermelho pro Jesus Cristo. Os olhos dos santos a impressionava.
Lá na frente, dona Ramona a falar dos dez mandamentos. O que não podia fazer de jeito nenhum pra ser um bom católico. Não matarás. Não roubarás... De soslaio, observava o corpo de Cristo nu, pendurado na grande cruz, no meio da parede do altar. Magro... o pano que cobria suas partes íntimas... Imaginava. Pecadora, dizia pra si mesma. Afinal, como dizia dona Ramona: se pecava também por pensamentos.
De vez em quando, uma olhada pra trás. Curiosidade apenas. Da criançada, nem um pio. Nem uma pergunta. Nada.
E, então, se surpreendia com a voz forte e o olhar fixo de dona Ramona sobre ela: -- “o diabo vem beijar quem olha pra trás na igreja”. E, ela via a cena: o capeta, com cara magra, chifres, bigode e barbinha, encostava seu rosto no seu. Um arrepio pelo corpo.
Em casa, pedia perdão ao Cristo de coração exposto na imagem pendurada na parede do quarto. Benzida pelo padre Arnaldo. Sem bênção não tinha força. Aquela não, um dia, sentada no muro da casa, vira quando o padre chegara. Apressado, como sempre. Pouca conversa. Benzera a imagem com água benta. Como fazia nas casas das pessoas com gente doente, criança nova que nascia...
Era, de fato, uma pecadora. Até o quarto do padre espiara um dia. A casa do velho polonês ficava anexa à igreja. Sem portas ou portões. Apenas uma área livre separava as duas construções. E o que vira. Uma cama, um criado-mudo com um livro. Móveis de madeira. Tudo muito escuro. Sinistro.
Nunca mais voltou lá.
De dona Ramona pouco sabia. Morava na parte de cima de um sobrado sobre uma loja de consertos de relógios de uns lituanos. Dois irmãos, solteiros. Na pequena vitrine da frente, algumas pequenas joias espalhadas displicentemente. Ali, parava pra admirar as peças. Bonitos desenhos de anéis e brincos.
Acabou o catecismo. Fez a primeira comunhão. Dona Ramona, claro, na primeira fila dos bancos da igreja. Da cerimônia, lembra apenas do lindo vestido branco. Do cabelo arrumado. A fome pelo jejum obrigatório e padre Arnaldo a balbuciar algumas palavras enquanto rapidamente botava as hóstias nas bocas abertas enfileiradas à sua frente.
Neusa Gatto é jornalista e produtora de vídeos.