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Onde erramos?

15 de Abril de 2021 às 00:01

Onde erramos? Crédito da foto: pixabay.com

Leandro Karnal

O primeiro susto foi em um restaurante em Tóquio. Paguei a conta e deixei dinheiro a mais. A moça veio atrás de mim devolvendo o “excesso”. Insisti que era para ela. Recebi uma recusa polida: “it’s my job”. Sim, era o trabalho dela. Guardei as notas com algum constrangimento. Parecia que eu tinha maculado um ambiente puro. Em uma metrópole como a capital do Japão, a maioria dos trabalhadores está acostumada ao oferecimento de gorjetas por parte de turistas. Nos lugares menores, bem sei, decai o inglês e aumenta o espanto. “Já sou pago para fazer o que faço. Fazer bem é um item de honra e não pode ser em função do desejo de dinheiro.” Parece-me sempre ter ouvido isso sem nunca ter entendido o que falavam. Meu japonês é inexistente e o inglês, fora das grandes áreas urbanas, é fraco no arquipélago do sol nascente.

Vamos em direção ao Ocidente. Há países nos quais as quantias extras são esperadas por todo serviço. Turistas são fonte de renda e existe pobreza. Salários baixos impelem trabalhadores a aguardar o amparo suplementar. Já fiquei irritado em viagens. Parecia, por vezes, que um simples sorriso deveria ser recompensado com um dólar. Uma vez, indo a um congresso com minha amiga Flavia Galli Tatsch, pessoas pegaram nossas malas na esteira do aeroporto e saíram em passo rápido. Fui atrás rápido, imaginando um roubo. Não! Eram carregadores que, sem pedir ou oferecer, pegaram as bagagens e saíram até a rua para... receberem gorjeta. Sorridentes, colocaram os volumes no carro que indiquei e esticaram as mãos ávidas. Na prática, houve um sequestro relâmpago das nossas roupas e o resgate era em matéria sonante.

Achava que eram as dificuldades econômicas que explicavam o fato. Todavia, em grandes economias capitalistas, como os EUA, a gorjeta é até mais sagrada do que em rincões do Terceiro Mundo. É grave, crime de lesa-pátria, não deixar o valor no pagamento na terra do presidente Biden. Pode ser que em alguns lugares seja a luta pela sobrevivência, em outros o capitalismo que tabela de trabalho a felicidade. O que explicaria o Japão?

No Brasil, por exemplo, oferecemos prêmios para crianças de classe média e alta para fazerem o que deveriam por pura e primária obrigação. Viagens, presentes, dinheiros e outros são ofertados na bandeja do futuro para que os jovens... estudem. É uma forma de suborno ou recurso válido para a educação. Será que as crianças japonesas, diante de um convite a um regalo para que estudem, responderiam: “Não, meu pai, não posso aceitar seu oferecimento. Eu estudo para ter um futuro e ser digno do nome da família, afinal, it’s my job?”. Vindo do Brasil, a terra que apresenta alto índice de trabalho infantil em classes baixas e altíssimos níveis de mimo pedagógico nas altas, tendemos a idealizar sistemas sociais e educativos melhores.

Crianças francesas comem de tudo e nunca fazem “manha” pública. Crianças japonesas trabalham com a ideia de dever em grau elevado. Onde erramos?

Sabemos que nós, mais velhos, quase sempre tivemos pais com regras mais claras do que as gerações atuais. O Legislativo da casa da nossa primeira idade estava fora do nosso alcance: todos os valores e normas vinham prontos e pétreos. Nem sempre era justo e quase nunca fácil. “Deitem-se às 21h!” Por quê? Seria grave 20h45min? 21h15min? Ninguém sabia. Era assim desde a aurora dos tempos e a ordem do mundo dependia do rápido atendimento da diretiva materna. Desligar a televisão (a única, na sala). Escovar os dentes e cama! “Mas eu não estou com sono!” “Não precisa dormir, meu filho, basta ficar quietinho no quarto com luz apagada até amanhã.”

Submetidos, outrora, a regimes menos inclinados à negociação, imaginamos que os jovens de hoje são folgados e cheios de birra. Um psicanalista daria boas pistas para analisar nosso horror aos sistemas em vigência como forma de responder a nossas dores. Como mudamos de lado com o tempo, temos maior apreço pelo cabo do chicote do que compaixão pelo lombo que o suporta.

Crianças devem ser ouvidas sempre e atendidas de quando em vez. Regras devem ser racionais, claras e justas. Exceções podem e devem ser abertas em nome de valores maiores do que a norma, como a defesa da vida. Nunca deveria ser oferecido suborno para que um filho faça o que deveria fazer. Elogios são bem-vindos, críticas com cuidado e sem humilhação, indicando o caminho correto. Explicação olho no olho, abaixando-se para falar com uma criança. A birra existe e não há dano permanente se alguém de sete anos não receber o que deseja na hora que solicita. Nunca, jamais usar de autoridades externas ou imaginárias em caso de recusa infantil: “Eu vou chamar o guarda...” É uma mentira e você perderá sua autoridade. Você é pai ou mãe, não “amiguinho” do filho.

Crianças não podem trabalhar formalmente, devem estudar e brincar. Elas devem ser estimuladas a tarefas leves domésticas como arrumar a cama e guardar brinquedos quando tiverem discernimento para tal. Presentes dados a todo instante diluem a alegria das datas. Os limites devem ser dados e jamais a violência física. É quase uma sina: erramos em educação, sempre. Porém, alguns cuidados impediriam que transformássemos crianças pobres em pequenos escravos e as ricas em imbecis mimados. Evitar tais erros já ajudaria bastante o futuro do nosso amado País. Boa semana com esperança nas crianças.

Leandro Karnal é historiador e escritor, autor de “O Dilema do Porco-espinho”, entre outros.