O sonho da águia e a realidade da galinha

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Crédito da foto: Vanessa Tenor

Crédito da foto: Vanessa Tenor

Leandro Karnal

Um começo: a primeira aula foi espetacular. Havia um nervosismo estimulante no ambiente. Ele usou seu charme, conhecimento, humor e gestos. O público era novo e estava ansioso. Os alunos esboçaram sorrisos, eventuais gargalhadas, expressões de contentamento, admiração e murmúrios de genuína satisfação. Era evidente que o jogo sutil de sedução e encantamento tinha funcionado. Era a reunião da técnica com a experiência. A aula de duas horas sintetizou uma vida dedicada ao saber e ao exercício retórico do magistério. Houve até insinuações de palmas ao término. Cheio de si, o mestre se retirou ansioso por narrar o êxito em casa. Sentia-se inundado de estima por si e pelas escolhas que fizera ao longo da vida. Descobria o cruzamento do lúdico com o profissional e sua vida era o sucesso de vocação bem desenvolvida.

Outro começo: ela adiara o primeiro contato físico efetivo. Sempre aquele medo de parecer fácil, que, como em uma partida de tênis, ora era sacado por seu pensamento crítico, ora reaparecia, rebatido pelo peso de séculos contidos no olhar da mãe como memória. Chegara a hora. Ambos estavam preparados e ansiosos.

Ela o convidou para o apartamento e preparou o cenário. Ele chegou um pouco adiantado, também ansioso. Estavam saindo há quase um mês e era o momento perfeito. Banhos minuciosos e dentes escovados à exaustão. Olhares com certo pudor ao perceber no espelho da face alheia o seu próprio desejo refletido. Uma garrafa adequada na mão dele: nem caríssimo que parecesse pretensioso nem excessivamente casual. A espera tinha valido a pena e o vinho facilitou os trâmites corporais. Foi, para ambos, uma noite muito boa. Eles baixaram as guardas e as roupas com naturalidade. Sem combinação prévia ensaiada, os corpos se descobriram com liberdade e prazer. Era uma noite perfeita e feliz e parecia ser o prelúdio de muitas similares. Ela foi à sacada vê-lo sair andando pela calçada e, intuitivamente, ele se voltou para o quinto andar e a viu, sorrindo. Era uma Julieta no balcão sem a tragédia do sobrenome. Amanhecia a felicidade para o casal.

Último começo: houve anos de economia e dezenas de indagações. Todos os recursos e conhecimentos tinham sido dirigidos para o novo restaurante. Era a paixão dela e seu antigo talento. Como os heróis épicos, ela havia queimado os navios: não haveria novos recursos e por isso tinha de dar certo. O talento dela para combinar gastronomia e administração era conhecido. Em um mundo movediço, ela parecia dotada de vontade e certeza férreas. Os pratos, a carta de vinhos, a decoração, as contratações, o marketing: raras vezes um negócio fora tão estudado como um plano de batalha minucioso. A noite inaugural fora de rara felicidade. Os críticos mais exigentes tinham se rendido. As redes sociais entraram em polvorosa. Era evidente: a star is Born!

Três narrativas mostram o sucesso dos bons começos e o espoucar de fogos de viradas. Narrei alvoreceres impregnados de esperança, auroras de sorrisos. Talento e esforço, desejo e empenho podem garantir algo próximo disso para muitas e muitos. Existe o dia depois do primeiro. A primeira aula é seguida de uma segunda. A vigésima aula repetirá alguns recursos didáticos. Nem Beethoven faria uma nona sinfonia por semana. O casal que se descobre está imerso no seu êxtase cheio de novidades. Será a centésima noite tão impactante? Surge a velha rotina amorosa. Inauguram-se dores de cabeça, despontam cansaços do trabalho. A repetição é demolidora da ansiedade e construtora do tédio. A glória de Romeu e de Julieta foi terem vivido tudo em menos de uma semana. Os pratos da inauguração agradaram muito. Clientes satisfeitos voltaram na semana seguinte e mais uma vez. Experimentaram maravilhados a técnica e o talento da jovem. O sucesso trouxe famílias repetidas vezes e os carros-chefe do cardápio foram experimentados por todos. Era necessário renovar. Após o começo, foi necessário substituir funcionários. Fornecedores tinham certas irregularidades. O cotidiano era formado de ondas que se chocavam com as rochas da vontade.

Talvez seja o desafio das boas comédias românticas. Elas terminam onde as pessoas reais começam. Do fundo da sala, no recanto dos colchões dos amantes e da última mesa do restaurante vem um cansaço, uma pequena crítica, uma diminuição da paciência, a melancolia cotidiana. Surge a demanda pela santa resiliência, a virtude da continuidade. O começo parece aquele corredor amador da São Silvestre que dispara acenando para as câmeras, sorrindo, paramentado e cheio de uma energia que, cinco quarteirões depois, está se arrastando pelo asfalto. Mesmo cheio de espalhafato, o voo das galinhas é curto, raso e se esgota em um pífio bater de asas. Resiliência é tudo e a realidade não é composta de endorfina em doses cavalares. A vida real não termina após o êxito inicial dos protagonistas. O voo aquilino é altivo, porém a distância do solo pode iludir. Águia e galinha entram em diálogo perigoso entre ambição e realidade dos dias. A águia sonha alto, a galinha precisa lidar com a realidade desgastante. Quem descobriu a chave da resiliência encontrou o segredo de prolongar as estreias além do capítulo um. Bom domingo para todos nós.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.