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O papel do Promotor de Justiça numa sociedade democrática

02 de Novembro de 2019 às 00:01

Antônio Farto Neto

Muitos hoje conhecem as funções do Ministério Público na esfera criminal, especialmente depois do fenômeno “Lava Jato”, ou pelas atuações das Promotorias Criminais e dos Gaecos -- Grupos de Combate ao Crime Organizado --, mas nem só de prisões e condenações vive o MP.

Desde que ingressei na carreira, há quase 30 anos, sempre me dediquei ao atendimento ao público trabalhando de portas abertas para vítimas, idosos, crianças, adolescentes, pessoas carentes ou com necessidades especiais, consumidores, representantes de Ongs e de diversos seguimentos da sociedade em geral. Aliás, todos os Promotores de Justiça fazem isso, todos os dias.

Quis o legislador constituinte que detivéssemos a titularidade exclusiva da ação penal pública, o que significa atuar em mais de 95% dos delitos nos quais a vítima não precisa processar o criminoso, pois esse papel de acusação é exercido privativamente pelo Promotor, daí a função de promover a Justiça.

E não estamos falando apenas da esfera criminal, pois a Constituição Federal nos incumbiu também a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis, dentre os quais destaco o direito à vida, à saúde, o direito de liberdade e por via reflexa o direito à presunção de inocência.

Daí tratar-se o Promotor de Justiça não de um algoz ou de um carrasco (até porque não cumpre determinações de ninguém), mas sim do Advogado da Sociedade.

Nessa ótica, incumbidos de defender as pessoas da sociedade que são vítimas de toda ordem de crimes e de ilícitos cíveis ou administrativos, como improbidade administrativa, fraude em licitações, peculato, contratações irregulares, etc., também somos responsáveis pela punição de agentes públicos que se desviam de suas funções, sejam eles policiais, políticos, fiscais ou mesmo particulares que, ao contratarem com o Poder Público, adquirem vantagens ilícitas.

Dada essa representação da sociedade que exerço com dedicação há tantos anos, creio, estou apto para avaliar a discussão que se trava no Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade de prisão a partir da condenação em segunda instância, observando, com todo respeito, que nem todos os Ministros foram juízes de carreira ou exerceram representação pública. Mais importante, entretanto, no meu ponto de vista, é que muito além e antes de ser Promotor de Justiça, sou um cidadão e um pai de família.

Minha opinião é simples: todos os sistemas jurídicos democráticos do mundo preveem o agora conhecido princípio do “duplo grau de jurisdição”, que significa a possibilidade de recorrer da decisão de um juiz monocrático para um tribunal (de regra colegiado). Vejam que não estamos tratando do triplo, quádruplo, quíntuplo ou vigésimo quinto grau de jurisdição...

Ainda que considerado outro princípio, mais amplo e igualmente importante, o da presunção de inocência (ninguém pode ser considerado culpado antes do “trânsito em julgado”, ou seja, antes de esgotados todos os recursos), ouso entender, como Advogado da Sociedade, que este deve se submeter àquele, mais específico. Por quê? Porque a Constituição Federal quis assim; esse foi no nosso pacto social em 1988.

A possibilidade de início de cumprimento de pena depois do trânsito em julgado em segunda instância (aqui respeitado o princípio do duplo grau de jurisdição), é anseio de todas as vítimas dos mais diversos delitos, sejam eles praticados com violência, grave ameaça, emprego de armas, ou mesmo dos chamados crimes de “colarinho branco”.

Aqui quero me prevalecer de uma regra de hermenêutica que foi reavivada pela saudosa Ada Pelegrini Grinover em sua tese para cátedra na Faculdade de Direito da USP: o “princípio de convivência das liberdades públicas”. O direito social de uma maioria (cidadãos de bem que não cometem crimes) deve prevalecer sobre os direitos individuais de uma minoria (criminosos condenados, que são minoria de nossa população), simples assim. Isso é democracia, a prevalência da vontade da maioria sobre a vontade da minoria.

Creio que os leitores deste centenário e conceituado jornal fazem parte dessa maioria.

Agradeço a Deus e à minha família por ter passado tantos anos numa carreira tão gratificante e honrosa.

Antônio Farto Neto, é Promotor de Justiça, formado pela Faculdade de Direito de Sorocaba.