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O instagram dos santos

23 de Outubro de 2019 às 00:01

O instagram dos santos Crédito da foto: Alastair Pike / AFP

Leandro Karnal

Eles eram perfeitos de todas as formas. Foram assinalados pela graça divina antes do nascimento. Alguns não mamavam no seio materno às sextas-feiras (por causa da Paixão de Jesus). A biografia irretocável dos santos cresceu durante toda a Idade Média. Era um tipo específico de escrita sobre os eleitos de Deus: a hagiografia.

Com o tempo, o escrito hagiográfico virou um adjetivo que quer dizer excesso de elogios na descrição, idealização da personagem, omissão de defeitos e ênfase no caráter heroico das ações.

A mais famosa narrativa do estilo descrito é Legenda Áurea, obra do século 13, de autoria do arcebispo dominicano de Gênova, Tiago de Voragine.

Apenas na Idade Moderna haveria uma reação crítica ao enfoque hagiográfico idealizador. Eram os “bolandistas”, pesquisadores jesuítas que pretendiam expurgar o folclórico das biografias dos santos.

A narrativa hagiográfica é muito sedutora. O herói deve encarnar valores do grupo em grau exemplar. O santo é tudo o que não somos e, provavelmente, nunca seremos. Nem sempre foi assim.

Os homens da Antiguidade viam muita humanidade nos seus heróis, como Aquiles ou Hércules. Os seres olímpicos eram falhos, apenas imortais e poderosos. Embora não seja algo exclusivo do Cristianismo, a religião dos seguidores de Jesus aumentou muito a busca de uma descrição próxima da perfeição.

A hagiografia é uma forma de propaganda. Biografias de políticos são, quase sempre, hagiográficas. As personagens políticas vão sendo enquadradas em tipos ideais sem muitos matizes, ao menos na consciência dos devotos de cada seita.

Verborragias viram “autenticidade” e toda acusação se transmuta em “perseguição”. Falta bolandismo na política. Sobra mitologia, abunda falseamento e somem áreas de transição. Tudo é polarizado, como em grandes santos em luta contra grandes demônios.

Estudo religiões porque acho que elas moldaram a maneira de pensar as sociedades. Pessoas de esquerda ou de direita, ateus e piedosos, católicos e pentecostais, ricos e pobres continuam fazendo narrativas hagiográficas dos seres que veneram na política, na cultura ou no mundo empresarial.

Como na Legenda Áurea, ou se é São Jorge ou se é dragão, cavaleiro ou sauro abominável, aliado de Deus ou representante das hostes demoníacas. Essa é a retórica das redes sociais, estrutura narrativa que flerta mais com o dramalhão mexicano estereotipado do que com a riqueza do humano real.

O instagram dos santos continua bombando, o demoníaco também.

Seria curioso fugir da estrutura narrativa clássica de santos ou demônios. Que tal humanidade? Um candidato diria: “Fui adepto de tal linha política ou partido. Naquela época, parecia o melhor e o mais lógico. Depois, tudo mudou e fui para outro campo”.

Seria um reconhecimento de humanidade, de capacidade de reavaliar. D. Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo de Olinda-Recife (candidato aos altares), foi integralista de extrema-direita. Terminou a vida como representante do clero progressista.

Carlos Lacerda (1914-1977) foi militante comunista. Chegou à maturidade como um político conservador. Os dois eram inteligentes e sensíveis à coletividade. Admiro a trajetória deles no aspecto da capacidade de mudar e assumir a mudança, sem escamoteá-las de suas biografias.

Como estariam hoje? D. Hélder ainda seria ligado à Teologia da Libertação que a elite vaticana defenestrou? O governador da Guanabara estaria ao lado do governo atual? Não temos como responder, apenas sabemos que a inteligência conduz à reflexão crítica e esta pode indicar mudanças.

Michel de Montaigne (1553-1592) associou a certeza absoluta à loucura. Sempre desconfiei de extremos, ainda que ache a paixão interessante. Radicais podem ser defendidos como pessoas que vão à raiz, como diz a palavra. Porém, só a burrice ou a insanidade faz alguém pensar na raiz como o todo do universo possível de existência.

Sempre imaginei os santos como muito humanos. Alguns foram problemáticos; outros, intoleráveis no convívio. As narrativas sobre eles, as hagiografias, produziram uma personagem perfeita. Gosto de lê-las como um gênero literário, abomino a ideia de que a santidade exclua humanidade.

Seres humanos normais, como eu e como você, querida leitora e estimado leitor, pensamos de um jeito, aprendemos, vivemos e mudamos de ideia. Ninguém daria aula hoje como deu sua primeira aula. Ninguém criaria seus filhos do jeito exato que o fez no passado. Aliás, quem diz que agiria da mesma maneira deveria ser impedido de ter novos filhos ou de receber uma nova turma.

Mudar de posição a partir de novos dados ou dos erros: uma chave do humano e da consciência. Permanecer no mesmo ponto sempre mostrando uma face do poliedro para o público é um equívoco e, normalmente, chamamos esse erro de “redes sociais”.

Deus é imutável, os seres humanos são volúveis e as redes sociais são a tentativa de canonização em vida da perfeição de cada internauta. É preciso ter um pouco de esperança e um pouco menos de fé em santos com instagram.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.