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O homem do futuro

12 de Agosto de 2020 às 00:01

O homem do futuro Crédito da foto: Divulgação

Leandro Karnal

Lendo os contos de Fiodor Dostoievski (Contos Reunidos, São Paulo: Ed. 34, 2017), encontrei uma citação garimpada por Fátima Bianchi do texto Diário de um Escritor (1876): “O homem é inteiro apenas no futuro”. O sentido é variado. Somente no futuro (e, especialmente, na hora final) temos a unidade, somos perfeitos no sentido de perfectus (fazer inteiramente, acabar). O instante consciente final é o que permite avaliar a trajetória da unidade.

O grande padre Antonio Vieira falou do instante “perfeito” no Sermão da Quarta-Feira de Cinzas (Roma, 1670): “A morte tem duas portas: uma porta de vidro, por onde se sai da vida; outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre essas duas portas se acha, subitamente, um homem no instante da morte sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar por onde não sabe e para sempre”. Segundo o inaciano, a morte não é terrível pela vida que se acaba, todavia pela eternidade que começa. O que haverá depois da porta adamantina?

O escultor barroco Gian Lorenzo Bernini fez duas pequenas estátuas com o instante seguinte. Merecem ser vistas na internet. Uma é a Alma Bendita (Anima Beata, 1619), que mostra um busto feminino adornado por coroa de flores observando a bem-aventurança do Paraíso recém-avistado. Há, ali, o toque do mestre. Porém, a arte suprema do gênio napolitano está no busto masculino Alma Danada (Anima Dannata, também de 1619). Após abrir a porta que Vieira identificou à frente, o condenado contempla os horrores eternos do Inferno. Seu cabelo se arrepia. A boca se abre em um grito de horror. Especialistas já afirmaram que os bustos podem ser relacionados à representação de uma ninfa e de um sátiro, talvez mais do que a almas impactadas.

O objetivo desta coluna não é fazer um gênero que seria muito popular na Idade Moderna, quando se falava muito da boa morte e da oposta agonia de um “libertino” (termo que surge como um conceito de livre-pensador, devasso, ateu ou tudo junto).

O medo do Inferno foi representado muitas vezes e tinha por objetivo causar uma adesão ao Paraíso e seu projeto. Mas a coluna não tratará disso. Volto ao brilhante autor de Crime e Castigo. Se o homem do futuro é o ser inteiro e completo, o que esse homem poderia iluminar no presente? Em outras palavras: imagine-se na porta de Vieira, ou talvez uns minutos antes de atravessar a de vidro que encerra a existência. Fiquemos no campo ainda da matéria biológica. Falta pouco para você se despedir da vida. Tudo fica relativizado. Pompas e circunstâncias foram para o ralo. O que aquela pessoa (você no futuro) teria a dizer para você hoje?

É comum perguntarem a pessoas de sucesso o que diriam para quem está começando. Muitas entrevistas lançam a pergunta fatídica: “O que você aconselharia ao jovem que você foi?”. Estou sugerindo o exercício ficcional-moral de pensar nosso inevitável fim para estabelecer a total perfeição da perspectiva.

Há um texto apócrifo lançado na conta de Jorge Luis Borges. As frases percorrem a toada do arrependimento final; ele teria “corrido mais riscos, tomaria mais sorvete e menos lentilha, teria andado mais de pés descalços”. A ideia é interessante: com supostos 85 anos e morrendo, o argentino teria desejado menos privações e mais prazeres. Não é de Borges, mas uma livre adaptação em versos de um texto norte-americano dos anos 1930. Funciona de qualquer forma.

O livro Antes de Partir (Geração Editorial) é uma reflexão da enfermeira australiana Bronnie Ware. Ela lidou com doentes terminais por anos e recebeu confissões muito honestas de gente que estava morrendo. Os cinco maiores arrependimentos, segundo a autora, seriam: 1- Eu gostaria de ter tido coragem de viver uma vida fiel a mim mesmo, e não a vida que os outros esperavam de mim; 2- Eu gostaria de não ter trabalhado tanto; 3- Eu gostaria de ter tido coragem de expressar meus sentimentos; 4- Eu gostaria de ter mantido contato com meus amigos; 5- Eu gostaria de ter me deixado ser mais feliz. O texto é fascinante e sensível. Quando estamos aconselhando jovens, dizemos que eles devem trabalhar duro nas suas metas, que o sacrifício valerá a pena, que o empreendedor é alguém que sacrifica muito em nome do triunfo, etc. Quando estamos morrendo, pensamos que deveríamos ter trabalhado menos...

Voltemos ao exercício. A epidemia de coronavírus talvez tenha feito muita gente refletir sobre vida e morte. Os textos de Vieira, a frase de Dostoievski, o livro de Bronnie Ware e os bustos de Bernini podem indicar caminhos muito variados e atitudes distintas. Queria apenas reforçar o exercício que fiz esta semana. Serei pleno apenas no fim. O que o Leandro completo pode ensinar ao Leandro incompleto que existe agora enquanto escreve?

Não me preocupa tanto a ideia da morte inevitável. Reflito sobre como essa finitude pode iluminar a vida. Quero existir melhor, mais do que morrer bem. Morrer é inevitável e é um instante apenas. Viver é um desafio enorme e pode ser alterado. É mais científico focar na vida. É preciso ter muita esperança para querer viver.

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.