O hábito e as pernas
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Leandro Karnal
O romano Horácio garantiu que eu posso pegar um forcado e jogá-lo longe: a natureza sempre volta. Jesus foi mais longe: ao falar do exorcismo de demônios, advertiu que o maligno pode voltar com sete companheiros para o corpo do qual ele foi expulso. (Lc 11,26). A sabedoria popular repete que “o cachimbo deforma a boca”. Ambrose Bierce afirmava que os hábitos são “as algemas do homem livre”. Antes de todos eles, Aristóteles definiu que o costume era uma segunda natureza. Somos livres apenas dentro dos muros de nossos cacoetes.
Os hábitos são bizarros olhados de longe. São fiéis, igualmente. Afastados por uma circunstância, voltam, poderosos. Passe um mês no interior do Japão, com um café da manhã distante da junção costumeira (café, leite e pão) do Brasil e a volta parecerá a ceia mais requintada do mundo. O desjejum é o campo imperioso da repetição.
Temos de olhar mais fundo. Eu tenho muito gosto em comer peixe. Adoro, por ancestralidade, pedaços de arenque com cebola e pimenta rosa, quase um produto que evita doenças venéreas, pois seu hálito será repulsivo pelo dia todo! Descobri, em São Paulo, o sushi. Virei entusiasta. Poderia viver de comida japonesa... no jantar. Aos pés do Monte Hakone (ilha de Honshu, a maior do arquipélago) no Japão, em ambiente paradisíaco de um hotel tradicional nipônico (ryokan), dormi sobre um futon (espécie de colchão) e vesti um roupão chamado yukata. Que experiência! Que imersão! Pequenos bambus no jardim visível da janela, um tatame especial e uma noite silenciosa ignorando que meu vizinho era um vulcão que eu esperava continuar extinto por mais alguns dias. Aceitei cada experiência como uma descoberta maravilhosa. Lembrando-me do hotel excelente de Tóquio, esperava do desjejum algo como ovos “benedict” ou um croissant comum com expresso. O café não tinha café, mas peixe, algas, arroz e chá verde. O inglês da simpática atendente não acompanhou minhas perguntas sobre alternativas. Em resumo: meu paladar se inclina à comida japonesa, mas arroz e peixe cru antes das 7 horas da manhã é um desafio que excede minha disposição. Em minha defesa também não consegui tomar a forte aguardente escandinava (aquavita) no amanhecer entre a Suécia e a Dinamarca. Aliás, chamar o smorgarbord de café da manhã é só uma tentativa de tradução cultural. É uma refeição farta e cheia de coisas que nadam (ou nadavam), batatas e embutidos, regada com a forte aguardente. Problema de sabor? Nenhum: tudo era muito bom. Resistência ao álcool na minha biografia? Infelizmente, nenhuma. O problema? Beber pela manhã. Claro: eu poderia usar o argumento de uma aluna em uma sala vip de Dubai. Encontrando champanhe excelente no intervalo entre os voos, ponderei que 5 horas da manhã era cedo demais para a garrafa. Ela comentou servindo para ambos: “Deve ser noite em algum lugar do planeta”. Sim, a retórica etílica é criativa e pode jogar com a relatividade do fuso. No meu hábito, o álcool é um fenômeno noturno, como o peixe cru.
Na terra da pizza, São Paulo, comê-la no almoço soa como heresia. Ela é opção para jantar e, como concessão aos adolescentes da casa, pode ser consumida fria pela manhã também.
Passamos pela longa experiência da quarentena deste ano pensando em um “novo normal” e na ressignificação dos hábitos. Muita gente perguntou se voltaria o mundo exatamente ao ponto no qual o coronavírus tinha encontrado nossos costumes. Já é uma boa hora para responder? Você voltou a tudo que era?
Afinal, o que precisa existir para a mudança de hábito? Os bons (atividade física, leitura, música de qualidade) ou os ruins (comer gorduras e doces, cigarros, álcool em excesso) parecem em eterno diálogo tenso.
Descerei do estômago para as pernas. Nos anos de 1940, o náilon foi usado em larga escala para paraquedas. A Dupont, fabricante das meias revolucionárias com o novo produto, desviou todo o esforço para material militar. Desoladas em um mercado no qual sumiram tanto a seda tradicional como o novo náilon, as mulheres adotaram o hábito de colocar pós e cremes sobre a pele das pernas imitando o tom da meia e um risco na parte posterior para parecer ainda mais real. A arte imita a vida. Não estavam de meia. Não tinham mais o produto, porém a tradição lançava muitas a um ato fake que atendia a uma demanda estética do costume. Funciona como uma peruca em um homem: todos sabem que é peruca, ninguém duvida de que se trata de um outdoor que esconde um terreno desolado. De alguma forma, o portador da peruca ou a mulher que riscava a perna tingida de bege sabem que o logro é público. O hábito é mais forte do que a vergonha. Voltamos à “segunda natureza” sobre a qual Aristóteles refletiu.
Regresso à advertência de Jesus. Expulsamos alguns demônios durante o pior da crise que vivemos. Estamos preparados para uma vida diferente ou corremos o risco de novos anjos decaídos invadirem nossa casa vazia e limpa? Quais hábitos desenvolvemos e quais eliminamos? Qual é a nossa liberdade de reinventar a vida após tantos problemas? Eis um bom desafio para nosso inverno atual. Boa semana para todos.
Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.