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O craque que virou engenheiro

01 de Fevereiro de 2020 às 00:01

Crédito da Foto: Fábio Rogério / Arquivo JCS

Aos meus amigos engenheiros

Para início desta nossa conversa semanal, informo. Tenho um filho engenheiro agrônomo e outro formado em arquitetura. Orgulho-me deles.

Odil Garcez Filho, demitido pela empresa onde trabalhava (anos 80), virou celebridade. Montou na avenida Paulista a lanchonete “Engenheiro que Virou Suco”. Pendurou seu diploma na parede e colou o registro do Crea no vidro do caixa. Deu a volta por cima.

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Entre alunos do colegial (anos 40) jocosa classificação brincava com nosso futuro. Os muito bons iriam para a Engenharia, os médios para Medicina, Odontologia e Farmácia. Aos demais, as demais. Que me perdoem os não engenheiros, mas demonstrar conhecimentos em física, desenho técnico, matemática, geometria e mineralogia era terrorismo vestibular à profissão liberal melhor remunerada, dentre as poucas que nos eram oferecidas. As empresas chegavam a pagar o curso para privilegiados estagiários. No exercício da Pediatria, muitos engenheiros horaram-me trazendo filhos para consulta e puericultura. Nos atendimentos, trocávamos informações sobre as respectivas profissões. Aprendi que, assalariados, perdíamos para eles. O piso maior e os fringe benefits (aluguel de casa, carros do ano, escola para os filhos, etc) elevavam os salários muito acima dos nossos. As variações do cenário econômico -- quase sempre agravados por governos incompetentes ou dispostos a estelionatos eleitorais para manutenção do poder -- vieram a nos ensinar o óbvio. Doenças não respeitam crises. Engenheiros e afins dependem de obras e investimentos que, por sua vez, dependem de recursos. Médicos ganhavam menos, mas seus empregos e misteres resistiam às recessões.

Criticam-me por falar bem de gente citada em minhas crônicas. O que pode parecer puxa-saquismo é meu jeito de encarar relacionamentos e obedecer à sabedoria popular “Se não puder falar bem, não fale”. Nunca usei este honroso espaço para idiossincrásicas rejeições. Se me perdoarem a imodéstia, fiz amigos nas mais variadas profissões, dos humildes servidores até figuras carimbadas na política e administração pública. Não caberia aqui rol de meus amigos engenheiros. Vou citar apenas dois.

Adalberto Nascimento. Dividiu comigo este espaço e fomos colegas de trabalho na Administração Municipal. Nos intervalos das reuniões brindava-nos com “matemágicas” e poemas de Fernando Pessoa. Culto, conhecia o que de melhor havia na literatura russa. Ouvia música erudita. Honrou a Academia Sorocabana de Letras ocupando a cadeira cujo patrono, Euclides da Cunha, era também engenheiro. Enquanto a saúde permitiu, Dal lutou para que a ASL tivesse instalações adequadas. Foi um dos incentivadores à publicação de meu primeiro livro, acompanhando-me por várias vezes, à Editora Ottoni.

Inteligência é capacidade em aplicar na prática conhecimentos teóricos. Valinho, engenheiro aposentado, poderia ter sido craque de futebol. Muito jovem, no colegial, quando lhe ensinaram física do lançamento de projéteis, aprofundou o estudo teórico e, sozinho num campo de várzea, começou a aplicar os princípios teóricos na técnica de projetar a bola. Tornou-se exímio chutador. Das peladas, alçado ao juvenil e, deste, para o amador do Barretos Futebol Clube. Tentaram profissionalizá-lo, mas seu foco era engenharia. Na Politécnica, seu jeitão interiorano, introspectivo, não chamou a atenção do treinador de futebol. Quando torcedores barrefenses foram revê-lo e constataram que não estava no time, pediram a cabeça do técnico, por não tê-lo aproveitado na Pauli-Poli*. A força e a precisão na cobrança das faltas e nos chutes de longa distância podia ter feito dele boleiro profissional. Um de seus técnicos o comparou a Jair Rosa Pinto. Valinho preferiu a engenharia. Casado, pai exemplar, estudava com os filhos desde o curso secundário até os vestibulares. O mais velho -- quando criança dizia querer ser médico com “o tio Edgard” -- entrou para a Medicina da USP e o segundo na Administração de Empresas. Ambos na 1ª tentativa. Durval “Valinho” Santos não virou craque nem suco. Preferiu ser engenheiro e pai.

(*) Competição esportiva entre a Escola Paulista de Medicina e a Politécnica.

Sorocaba, 28 de janeiro de 2020

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]