Morro de medo de morrer...

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Alguns dias depois da data do dia dos Mortos, 2 de novembro, me permito fazer uma reflexão sobre a morte. Não há nada de novo nesta reflexão, posto que o homem se debruça sobre tal questão desde que se reconheceu mortal.

A verdade é que morro de medo de morrer. Meses atrás os jornais noticiaram o caso do cientista britânico David Goodall que optou pela chamada morte assistida. Impedido na Inglaterra acabou conseguindo fazê-lo na Suíça.Trata-se de suicídio, que lá é chamado de morte assistida. Há todo um protocolo que se desenrola, com perguntas sobre o nível de consciência e lucidez do pretendente, questionário e protocolos rígidos. Tudo “muito civilizado”. Deixando surpreso e assustado quando visto como um procedimento burocrático de acabar com a vida.

O que chamou a atenção é que Goodall tinha 104 anos, estava lúcido, continuava produzindo suas teses e aparentava bom humor, tanto teria dito quando chegou à hora: “Isto está demorando muito”. A morte assistida, ou suicídio autorizado, que ocorre na Suíça é uma opção (sombria) para muitos indivíduos, a maioria com doenças terminais ou limitações incuráveis que os leva a esse fim. Não creio que a maioria das pessoas mundo afora tenha tal ansiedade por encontrar a morte.

Nem todos são religiosos ou, não necessariamente, creem noutra vida. E ninguém mesmo sabe que outra vida é essa. Sempre procurei diminuir a densidade desse assunto com pilherias dizendo que quando morresse, eu que sou médico, provavelmente veria anjos e trombetas, nuvens macias, ar puro, música suave e paz eterna como sugerem os estereótipos do céu. Porém me surpreenderia ao chegar ao Paraíso onde um São Pedro furioso olhando insistentemente para o relógio e batendo os pés nervosamente me diria sem muita delicadeza: -- “Atrasado!” E eu candidamente, embevecido com o Paraíso, com olhar e sorriso de Monalisa diria ao vetusto santo parado à porta do céu: -- “Sou eu São Pedro, só me atrasei foi porque estava me despedindo das coisas mundanas...”. E o santo ainda mais agitado já bufando e vermelho me diria: -- “Paraíso?! Olhe a fila enorme de pacientes esperando por você, pega logo suas coisas e vai atender! Cada alma que me aparece!”

Pensei, para minha concepção de “outra vida”, num Paraíso de sossego, almas flutuando e conversando em voz baixa, paisagens bucólicas, paz e harmonia. E de algum modo até mesmo essa imagem me incomodou. Imaginar que viverei pela eternidade sem surpresas e emoções... “no céu servem leite morno sem açúcar”, dizia um amigo para dar a dimensão da mesmice. Imaginar esse cenário me deixou a sensação de que a outra seria uma “vida de tédio eterno”, uma chatice que nos faria querer voltar para a Terra, e aí me consolei: “É isso! Tá aí porque voltamos”. Sonhar também consola.

Rousseau já dizia que insatisfação e aborrecimento são duas características humanas. Num momento estamos satisfeitos com o novo emprego, cargo, passeio, paixão. Noutro, insatisfeitos e aborrecidos querendo mudar, trocar, “fazer outra coisa” e a o ciclo se fecha. Logo achei que me aborreceria até mesmo no Céu. De qualquer modo me fez pensar que se houver outra vida, deve ser dado aos mortos ao menos a misericórdia do esquecimento, do contrário a eternidade seria um tormento para a alma que sofresse de saudades e lembranças dos que amava.

Por outro lado, a busca pela vida eterna parece ser, felizmente, a tônica mais forte nos seres vivos; é inadmissível para o indivíduo em condições mentais sadias atentar contra a própria vida. Quando pode ocorrer, ou pior, quando ocorre, cuida-se para que tenha assistência, apoio e abandone essa ideia.

Ainda há a ciência que busca um prolongamento da vida. Vários artigos se espalham pela Internet e revistas, bem como pesquisas sobre o assunto. Destaco o filósofo israelense Yuval Noh Harari, que escreveu o best-seller: “Uma breve história da Humanidade Sapiens” da editora L&PM, no qual ele aborda, entre vários assuntos, uma fusão entre homens e máquinas os cyborgs, explorados nos filmes de ficção, que nos levaria a outro patamar de existência e nos reclassificaria de homo-sapiens para homens-híbridos. E, arriscam os pesquisadores, segundo o livro, que por volta de 2050 seriamos “amortais”, não imortais, que não é concebível (o tempo máximo de vida para a espécie humana não passou de 125 anos), mas, segundo o autor a vida se prolongaria graças aos recursos tecnológicos e a medicina e se estenderia por muitos anos além da atual expectativa. Relata o autor que essas mudanças se dariam pela substituição das partes humanas por órgãos artificiais, desde próteses que substituem membros, órgãos internos e dos sentidos até implantes cerebrais com transferência de memória (já confirmada em experimento com caramujos) elevando nossa capacidade intelectual. Quem viver verá.

A ideia de morte como uma alternativa lúcida e pragmática, escolhida por David Goodall lá no começo destas linhas, é no mínimo bizarra para a maioria de nós. O apego à vida por mais difícil e tormentosa que seja, não incluiu essa alternativa e nos distanciamos desse pensamento da morte como opção consciente. A vida está presente sob as condições mais adversas. Em meio a guerras, modernos campos de concentração, nos sofrimentos cruéis, doenças, escravidão, tortura ou miséria predomina a vontade de viver. E foi sempre o apego à vida e o desejo de viver a qualquer custo que construiu a história da humanidade e mudou a compreensão de existir das pessoas.

Viver, a despeito do que há depois, se outra vida, se vida eterna ou nada, pouco importa, já estar vivo importa muito. O Céu pode ser muito bom, mas ninguém parece ter pressa de seguir para lá, mesmo aqui não sendo aquele mar de rosas.

Olhar a cada manhã, um novo dia é maravilhoso. Viver e encontrar sentido na vida ainda é a grande missão do ser humano. Viver e deixar viver é a única opção que faz sentido, tão cara e misteriosa é a vida.

José Feliciano é Redator-Roteirista de humor e mistério. Médico que procura prolongar a boa vida.