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Meu legado

24 de Março de 2019 às 00:01

Meu legado Crédito da foto: Vanessa Tenor

Leandro Karnal

Giovanni Battista Pergolesi nasceu em 1710. Vinte e seis anos depois, menos da metade da minha idade, faleceu, em 1736. Na sua vida curta, compôs uma famosa ópera cômica que consta entre as pioneiras do gênero (“La Serva Padrona”) quando tinha escassos 23 anos. Um pouco antes de morrer, fez uma música chamada “Stabat Mater”, que lembra a figura de Maria aos pés da cruz. “Estava a mãe dolorosa junto à cruz, lacrimosa”, geme a peça. É uma das músicas mais bonitas que conheço. Com pouca idade, Pergolesi deixou partituras insubstituíveis. Tivesse feito apenas o “Stabat Mater” e toda sua vida teria valido a pena.

Querem mais exemplos? O baiano Castro Alves nasceu em 1847. Morreu aos 24 anos, em Salvador. Estudando em São Paulo (e reclamando do frio da capital bandeirante) fez, com apenas 22 anos, o poema “O navio negreiro”. O poeta escreveu assim: “Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo. O trilho que Colombo abriu nas vagas, Como um íris no pélago profundo! Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo! Andrada! arranca esse pendão dos ares! Colombo! fecha a porta dos teus mares!”. Ser o autor de tais versos já justificaria uma existência. Fazê-los no verdor dos 20 e poucos anos é tarefa épica.

Castro Alves cedo. Outro jovem, Michelangelo, tinha entre 23 e 24 anos quando fez a Pietá. Ao entrar na Basílica de São Pedro, todos ficamos impactados com a força daquela peça extraída do mármore. Aumentaria nossa admiração considerar a idade do autor?

Sempre assim? Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas era uma respeitada doceira de Goiás. Havia nascido junto com a República, em 1889. Em 1965, quando a editora José Olympio trouxe seus versos, a artesã das compotas contava com 76 anos. Ela, que fazia versos desde a adolescência, tornou-se autora de livro publicado já septuagenária. Com mais de 80 anos, ficou conhecida fora de Goiás. Morreu aos 95, consagrada com seu pseudônimo de Cora Coralina. Ela escreveu por mais de 60 anos para, “de repente”, surgir como poeta.

O norte-americano Ezekiel Emanuel é defensor de uma tese pouco comum. Ele se considera feliz como marido e pai, e realizado na função de médico; não obstante, entende que devemos morrer aos 75 anos. Viver é bom, pensa ele, mas viver demais pode ser um erro. Ele chega a quantificar com estudos que daremos nossa contribuição inicial ao mundo a partir dos 15 anos, chegando à máxima a partir dos 40 anos. A partir dos 60 anos, a linha da “contribuição” decai muito. Ele insiste ser muito saudável morrer aos 75 anos. (https://www.theatlantic com/magazine/archive/2014/10/why-i-hope-to-die-at-75/379329/).

Questão curiosa: o doutor nasceu em 1957. Falta pouco mais de uma década para a idade-limite que ele defende no artigo. Como ele procederá? Manterá a disposição? Um médico amigo, oncologista, segredou-me que tem contato diário com gente que, como eu, diz não temer a morte e que, na hora de encarar a indesejada de frente, se apavora e se entrega ao desejo de viver como uma craca agarrada ao casco de um navio desgovernado. Geralmente não tememos a morte quando ela não é uma realidade. Somos estoicos com dores distantes ou alheias.

Assim segue a caravana. Uns produzem coisas extraordinárias muito cedo, outros entram no registro da história mais tarde. Um médico parece ter sido pago pelos que vão reformar a Previdência e pede que morramos aos 75. O sonho de toda previdência pública, um admirável mundo em que a morte está bem próxima da idade da contribuição.

Ninguém parece bem preparado para o fim. Os gênios, ao menos, como Pergolesi ou Castro Alves, podem dizer que deixaram um sulco fundo no terreno da humanidade. Outros, como nós, terão algumas coisas em vida e, lentamente, serão esquecidos. Você já se deu conta de que, quando você morrer, o nome dos seus avós terá sido esquecido, já que filhos e netos raramente são entusiasmados por árvores genealógicas? E tudo isso sem um “Stabat Mater” ou um “Navio negreiro”. Isso tranquiliza ou fere? E se você, querida leitora e estimado leitor, tivesse uma obra notável para deixar, mudaria algo? Bom domingo para todos nós, especialmente para os leitores e leitoras de mais de 75 anos.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.