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Menos e mais (a régua imperfeita de si)

13 de Outubro de 2019 às 00:01

Menos e mais (a régua imperfeita de si) Crédito da foto: Pixabay

Leandro Karnal

Há pessoas acima da média. Também há as que estão na média. Claro, outras tantas não atingem a linha da maioria. Explicações para isso existem aos montes. Primeiro lugar: ninguém é bom em tudo. Um gênio ao piano pode ser medíocre com uma bola nos pés; uma cirurgiã premiada pode ser péssima escritora; um físico com teorias revolucionárias em seu campo pode sofrer para usar a tesoura e cortar um tecido em linha reta. Logo, estar acima, abaixo ou na média é estar posicionado em relação a alguma classificação, não a todas.

Podemos também pensar que uma aptidão não é nada se não for estimulada. Uma criança com enorme potencial para ser um orador, se não aprender a ler e escrever, se não for exposta a um rico e diverso léxico desde cedo, não desenvolverá seus dotes plenamente. Uma conjugação de fatores sociais, conjunturais, físicos cria um elixir que produzirá ou abortará um Cícero. Mozart precisou da Áustria para ser o que foi, como Tom Jobim precisou do Brasil. “A graça supõe a natureza”, pensava Tomás de Aquino.

Esta coluna não é sobre a natureza do talento ou da mediocridade. É mais sobre um antigo adágio ibérico, datado do século 16: “Sente-se no seu lugar e não o farão se levantar”. Há duas leituras possíveis. Uma, de época, diz respeito ao lugar social de alguém: se for nobre, não se misture com a plebe; se for da plebe, não se misture com a aristocracia. As pessoas eram diferentes perante a lei e essa diferença tinha que ser destacada. Ande com os de sua laia. Outra é mais atemporal: se você tiver consciência de quem é, de seu real potencial, não há como errar o diapasão. Saberá qual sua cadeira, ao menos no início do baile. Depois, se decidir trocar para uma superior, terá mais segurança sabendo de onde partiu.

Tendemos a elogiar a modéstia. Não é raro pedir que um aluno avalie seu próprio trabalho e ele se atribua uma nota mais baixa do que eu daria. Temendo a empáfia, exageramos na modéstia. Certo estava Mario Quintana quando escreveu que a modéstia é vaidade atrás da porta.

O oposto talvez seja pior. Os que pensam mais sobre si mesmos superabundam num universo carente de graça. Há mais gente disposta a falar do que a ouvir; mais coaches do que coachees; mais professores do que alunos; mais filósofos de YouTube do que leitores de Filosofia. Fazendo muito de suas poucas habilidades, esse tipo de gente pode se tornar seu chefe, seu colega. Pode comentar seus posts, pode se intrometer na sua vida, dando conselhos que não foram pedidos. Os discursos contemporâneos de autoajuda acabam por estimular esse comportamento: todos podem, todos vencem, basta querer. E o tolo vaidoso, errando a medida na régua de si, cai como um pato e quem sofre somos nós. Mundo a fora, vários chegaram a posições de poder e hoje, do alto de sua incapacidade de autoavaliação objetiva, decidem os rumos de nossas vidas. Talvez nós estejamos fazendo pouco de nós mesmos de assistir, impávidos e bestializados, a um universo de erros de avaliação tão contundente.

Quem teria condições de se avaliar com equilíbrio e exatidão? Pouca gente. A tradição religiosa da humildade está fraca hoje. Todos são incentivados sempre de que são extraordinários, legais e que cada um brilhará muito, apenas precisando destravar seus potenciais. De alguma forma, a tendência é correta: o papel da educação (em casa, na escola) é promover o crescimento de todos e despertar o melhor de cada um. Seria errado fazer força em sentido contrário. Você tem certeza de todo o potencial do seu aluno/filho? Ninguém tem, logo, just in case, é bom incentivar muito. Meus professores franceses, quase todos, eram de outra cepa. Quando o texto estava perfeito, entregavam dizendo: “Pas mal”. Como traduzir? Talvez “não está ruim”. Isso era o mais perto de um elogio que cheguei a ouvir, acompanhado de certa bufada. O oposto também parece um risco: destacar apenas o positivo, fazendo filhos e alunos crerem que produziram uma nova Comédia Humana de Balzac a partir de uma pífia redação.

Avaliação é um desafio. Meu caminho (sem nenhuma convicção entusiasmada) tem sido dizer: “Tais e tais itens foram bem desenvolvidos e estão bons mesmo; outros quesitos mereceriam maior atenção”. Se nada houver a elogiar, correção com indicação de melhoria, sem adjetivar muito e, acima de tudo, sem expor a pessoa, apenas o erro. Adágio medieval: odiar o pecado e amar o pecador. Erramos menos, quando não tentamos qualificar demais o erro, apenas indicamos o caminho do acerto.

Isso garante sucesso? Destaca o brilho? Reforça o gênio? Não existe fórmula precisa. Balzac ouviu “pas mal” repetidas vezes, suponho. Nosso Machado de Assis nem sequer teve professores formais corrigindo ou incentivando seus primeiros textos. Ambos viraram gênios absolutos na sua área. Meu grande consolo: alunos e filhos sobrevivem aos nossos erros elogiando sem régua ou criticando sem medida. A indiferença é a coisa mais fatal para criar ressentimento. Sigamos Agostinho: amar sempre e com intensidade. Ama e faz o que quiseres. Sempre erraremos. Melhor que todo tropeço, tenha o amparo da vontade esperançosa calcada na vontade de ajudar. Boa e amorosa semana para todos nós.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.