Livros e terapia

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Crédito da foto: Vanessa Tenor

Crédito da foto: Vanessa Tenor

Leandro Karnal

Franz Kafka tinha algo como 21 anos quando, em uma carta para um amigo, definiu por que vale a pena ler. Era uma resposta. Seu colega dissera que ler era algo que deveria ser feito para nos deixar felizes. Kafka dizia o oposto, que devemos tender à leitura daquilo que nos fere, nos machuca: “Se o livro que estamos lendo não nos acordar com um golpe na cabeça, para que estamos lendo? Precisamos de livros que nos afetem como uma tragédia, que nos entristeçam profundamente, como a morte de alguém que amamos mais que a nós mesmos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado para o mar congelado dentro de nós. Essa é minha crença”.

Meu sentimento não é tão trágico como o de Kakfa, mas quem sou eu perto do gênio... Humildemente, penso que livros ferem, curam, sossegam, inquietam, quebram o gelo dentro de nós, congelam a alma. Às vezes, esse efeito bipolar da leitura pode se dar em uma mesma obra. O fato inescrutável é que bons livros nos formam, nos transformam.

Essa regra é universal e por isso me dói pensar que somos um país com tão poucos leitores. O número deles cresceu, mas, em média, o brasileiro lê apenas 2,5 livros por ano (a maioria é de livros religiosos).

Estatísticas são escorregadias: dizer que lemos 2,5 livros em média por ano é omitir que 30% de nós nunca compraram um livro e que 25% dos que leram algo o fizeram por exigência da fé, da escola ou do trabalho. É uma pena. As soluções passam por melhorias na educação (dando maior capacidade de compreensão daquilo que se lê), acesso aos livros (bibliotecas públicas, doações, expansão das livrarias físicas e on-line). Essas são questões macroestruturais mais complexas. Mas há questões de hábito, que podem ser resolvidas mais facilmente, com a criação de um clube ou laboratório de leitura, por exemplo.

Meu amigo Dante Claramonte Gallian dava aulas de História da Medicina na Unifesp. Tratava de história da medicina e analisava grandes médicos do passado, como Galeno ou Harvey. Aquilo foi ficando estranho, não conseguia humanizar a medicina -- que, em tese, deveria ser a quintessência do humano. Ele passou, então, a levar pequenos textos de autores antigos, medievais e modernos para que seus alunos lessem em primeira mão. A aula deu um salto. A experiência cresceu e nasceu um laboratório de humanidades, que ganhou vida própria e se transformou no laboratório de leitura. Um clube de leitores. Ninguém precisa ler acompanhado. Nossos hábitos de ler são históricos e mudaram muito com o tempo, mas há séculos temos o costume de ler silenciosamente, como exercício introspectivo. Ler é solidão. Mas compartilhar a leitura é algo igualmente rico.

As experiências de ler como busca de conhecimento de si e do mundo, ler como terapia inclusive, viraram o livro “A literatura como remédio” (Editora Martin Claret). Dante desenvolve o uso de clássicos como forma de se reelaborar. O projeto hoje atinge empresas. Cada vez mais administradores percebem o valor de funcionários diferenciados pela leitura produtiva de clássicos.

Em chave distinta, Fernanda Sofio fez o texto “Literacura - Psicanálise como forma literária” (Editora Fap-Unifesp). Buscando a voz poderosa (e pouco conhecida, surpreendentemente) de Fabio Herrmann como guia, as ideias de Sofio buscam na sensibilidade da criação literária um caminho de compreensão. Minha leitura de Freud foi muito renovada pela capacidade de refazer seu caminho de ruptura (em detrimento do dogmático) a partir do que a Fernanda encontra na ficção, como na obra de Herrmann “A infância de Adão”. Pelas mãos de Fernanda, li “A infância de Adão” e, confesso, fiquei muito tempo tentando digerir todas as provocações do texto.

Em uma análise terapêutica, sofremos, rimos, superamos, perlaboramos, remoemos, destilamos, superamos traumas e passagens de nossa existência. Na leitura, fazemos o mesmo a partir do poder narrativo, da grandeza poética da pena de outra pessoa. Machado, Lispector, Pessoa, Kafka, Cervantes, Shakespeare, Austen e tantos outros nos formam, nos estruturam, nos fazem sair de nós mesmos para voltarmos diferentes, como em qualquer história de herói clássica: o retorno a nossa Ítaca nunca trará o mesmo Ulisses que partiu.

Quer pensar uma experiência desafiadora para 2019? Comece um grupo de leitura. Escolha pessoas interessantes. Talvez existam três delas entre todos os seus conhecidos. Adotem um clássico. Leia de forma pausada. Usem os métodos de Dante ou de Fernanda como guias, se desejarem. É preciso querer muito porque o entusiasmo inicial vai esbarrar nas agendas em breve. Se você tiver um bom clássico e possuir algumas pessoas interessantes capazes de repetir uma reunião semanal ou quinzenal, exulte! Você é uma pessoa privilegiada. O resultado da experiência é transformador e mais barato do que muitas soluções contemporâneas em busca de paz e de conhecimento.

Sugestões? “O livro de Jó” na Bíblia, “Macbeth” de Shakespeare, “Dom Quixote” de Cervantes, “Lavoura arcaica” de Nassar, “Paixão segundo GH” de Clarice Lispector ou “Memórias” de Adriano de M. Yourcenar. Papel ou virtual? Irrelevante. Quantas páginas por semana? Subjetivo de acordo com o grupo, mas não mais de 50, para que se possa realmente aproveitar o debate. Digerir bem o texto é fundamental. Creia-me: tudo mudará no seu cérebro depois da experiência. Pensar é uma escolha metódica, é erguer uma cabeça acima do pântano e resistir ao frio externo. Pensar é sair das fogueirinhas acesas pelas bolhas sociais. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.