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Língua contaminada

05 de Junho de 2020 às 00:01

João Alvarenga

A cobertura midiática da pandemia tem evidenciado uma desagradável realidade: não só a sociedade está ameaçada pelo Covid-19, mas também nosso idioma enfrenta a contaminação do desprezo às regras gramaticais que regem o falar e escrever corretamente. Com isso, diariamente, assistimos aos noticiários com construções equivocadas e malabarismos linguísticos que passam longe das primeiras lições dos bancos escolares, num claro desrespeito até mesmo aos princípios elementares da comunicação de massa, em que a clareza da mensagem deve prevalecer.

Como é ensinado nas escolas, o Português é nosso rico patrimônio imaterial, merecedor de todo respeito, principalmente quando a informação transita pelos veículos de grande alcance social; porém, no mundo da notícia, é notório que a elegância da língua é atropelada pela pressa, pois o fato não respeita normas. Logo, os noticiários do fim de tarde, nas tevês abertas, são os que mais agridem a “última flor do Lácio”, com visíveis erros de concordância e regência. Além do emprego de formas verbais inexistentes, como: “seje” e “esteje”. Isso fica nítido nas matérias ao vivo, quando o repórter é obrigado a improvisar.

Nesse contexto, a ausência do chamado “plural metafônico” preocupa os educadores, pois muitos ignoram esse fenômeno gramatical marcado pela alternância do timbre de voz, por conta da vogal tônica presente nas palavras. Ou seja, é preciso mudar de entonação, quando determinado vocábulo passa para o plural. Esse assunto, presente no ensino médio, está ligado à Ortofonia, um capítulo da Fonética que trata da pronúncia correta das palavras. Conteúdo que deveria ser constantemente observado pelos profissionais de rádio e TV.

Como exemplo, temos a palavra ‘p/ô/rto’ que, ao ser pluralizada, deve ser pronunciada com a vogal tônica aberta, “p/ó/rtos”. O mesmo acontece com tij/ôlo -- tij/ó/los, ou ainda: amist/ô/so -- amist/ó/sos, coraj/ô/so -- coraj/ó/sos, teim/ô/so -- teim/ó/sos, /ô/lho -- /ó/lhos. Ou, também, “soc/ô/rro” que sofre mutação para “soc/ó/rros”, principalmente na clássica construção do meio hospitalar “primeiros-socorros”.

Contudo, o leitor deve entender que essa mudança de timbre só ocorre quando houver a passagem do singular para o plural. Outro detalhe: tais vocábulos paroxítonos, ao serem escritos, não são acentuados em hipótese alguma, sob pena de contrariar as regras de acentuação. Ou seja, não recebem acento circunflexo (^) nem agudo (°), como foi registrado na exemplificação acima, pois o processo de abertura da vogal só acontece no ato da fala. Nada muda na escrita. Embora a lista de tais termos que sofrem essa mutação sonora seja extensa, nem todas as palavras da nossa língua apresentam essa mesma característica. O vocábulo “r/ô/sto” jamais será pronunciado “r/ó/stos’, em caso de passagem para o plural.

Todavia, há um termo ligado às tragédias de grandes proporções que sempre solicita, não só a presença de ênfase na metafonia (ao ser pronunciada), mas também requer o registro só na forma plural; caso contrário, a pronúncia tende a ser desastrosa, além de gerar comicidade, como já aconteceu em algumas reportagens televisivas. Trata-se do substantivo masculino “destr/ó/ços”, que jamais aparecerá em sua forma singular, cujo sentido se traduz pela ideia de objetos lançados longe, após um sinistro. Muitas vezes, isso decorre de um acidente aéreo, em que a aeronave se fragmenta em várias partes, ou seja, ficam apenas os destroços.

Para concluir, a confusão reinante entre as locuções “ao encontro de” e “de encontro a” permanece como “um nó”, não só na linguagem coloquial, mas tem atrapalhado a vida de muitos jornalistas. Assim, na próxima quinzena, focaremos esse assunto.

João Alvarenga é professor de Língua Portuguesa, mestre em Comunicação e Cultura, produz e apresenta, com Alessandra Santos, o programa Nossa língua sem segredos, que vai ao ar pela Cruzeiro FM (92,3 MHz), às segundas-feiras, das 22h às 24h.