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Humor em tempos de peste

28 de Março de 2020 às 00:01

Humor em tempos de peste Crédito da foto: Divulgação

Edgard Steffen 

Aos seus avós, pediram fossem para a Guerra.

A vocês pedem apenas: Fiquem no sofá!

(Frase que circula na Internet em Portugal)

Recluso em meu apartamento, (e antes que pensem mal) sem tornozeleira eletrônica, sinto falta da rua. Não que saísse muito. Mas era gostoso jogar conversa fora com os amigos.

Eu e minha mulher sentimos falta dos filhos, noras, netos e bisnetos. Minhas netas já escreveram para nos animar: Vô e vó, fiquem em casa! Queremos nossos “coroas” vivos. Esse trocadilho deve estar bombando nas redes sociais, junto com um monte de piadas. Se a pandemia nos assusta e o isolamento nos incomoda, rir nos ajuda a relaxar. Relaxamento é do que precisamos quando, em plenos dias de peste, o boleto do plano de saúde é reajustado em 10 por cento e a renda de aposentado não sobe um tostão sequer.

Morador de apartamento, não posso obedecer àquele anônimo que colocou na rede sábio conselho: “Aproveite que não pode viajar nem ir em locais de aglomeração e faça um tour pelo quintal pra ver se não tem água criando mosquito da dengue”.

Se você é suficientemente otimista -- no sentido de pessimista mal informado -- a ponto de procurar alguma qualidade boa neste novo coronavírus, pode reputá-lo democrático. Atingiu país totalitário mas não poupou democracias. Não respeitou nem o oftalmologista que descobriu a doença nem o médico do hospital que atendeu os primeiros doentes em Wuhan (China). Não respeita os josés e marias-de-jesus (do saudoso Joelmir Betting) nem VIPS. “Coroou” antes do tempo o príncipe Charles. Carimbou a todo-poderosa Angela Merkel e os 24 da comitiva do presidente Bolsonaro. Como boa germânica, Frau Merkel foi para o isolamento voluntário sem fazer sélfies com seu fã-clube. Calou temporariamente o tenor Plácido Domingo e até vai ajudá-lo no perdão pelos assédios que cometeu em sua carreira. Também matou Sérgio Campos Trindade, engenheiro químico, raríssimo brazuca que fez parte da equipe vencedora do Nobel da Paz 2017 como integrante do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Changes).

Esvaziou ruas, shoppings, praias e igrejas. Revelou bons administradores como o ministro da Saúde e o governador de Goiás. Este saiu às ruas, megafone à mão, para obrigar velhinhos a respeitarem a fila e a distância entre seus próximos mais próximos. Estes dois nem eram sanitaristas. São ortopedistas.

Por obra do novo vírus, Tom Hanks -- personagem que salvou o tenente Dan no Vietnã, resgatou o soldado Ryan na 2ª Grande Guerra, sobreviveu ao desastre da Apolo 13 e à queda do avião da Fed, sobreviveu por três anos numa ilha deserta, aterrissou aeronave no rio Hudson, foi sequestrado por piratas somalis, ficou preso no aeroporto JFK por quase um ano, pegou Aids em Filadélfia -- como pessoa física está em quarentena na companhia de sua mulher.

Como a Lei de Murphy não poderia faltar, David Uip -- o competente chefe do Centro de Contingenciamento do Covid-19 no Estado de São Paulo -- está isolado e positivo para o Coronavírus.

Doenças infecciosas fizeram parte de meu dia a dia desde que me formei em Medicina. Brotos epidêmicos de varíola, sarampo, catapora, caxumba, coqueluche e casos de escarlatina, paralisia infantil, difteria e tétano eram rotineiros nos postos de puericultura que chefiei. Trabalhava em epidemiologia quando a idade superior a 72 anos jogou-me na compulsória.

Em meu isolamento, frustração. Não tenho como ajudar. A idade provecta incluiu-me no grupo de risco. O jeito é pôr minhas leituras em dia. Terminei “Uma breve história do Cristianismo” de Geoffrey Blainey, já estou na metade de “Copacabana -- Trajetória do samba-canção” escrito por Zuza Homem de Mello e releio “Os grandes desastres da Medicina” de Richard Gordon. Para descansar, navego pela internet, onde encontro pouco do humor que permeia a tragédia de nossos dias.

Machista, com certeza, escreve que até a pandemia tem seu lado bom. Sua mulher não compra nada que venha da China, não vai mais ao shopping para gastar nem o importuna querendo dinheiro para viagem. Não fosse trágico, até que seria cômico...

Sorocaba, 25/3/20120

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]