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Humanas ou exatas?

08 de Setembro de 2019 às 07:56

Crédito da foto: Pixabay.

Leandro Karnal

O ano escolar entra na sua reta final. Já existe um quadro claro dado pelas notas e pelo histórico anterior do aluno. Muitos repetiram uma convicção: “Eu não tenho jeito para exatas”, uma forma de dizer que “Eu estou mal em Matemática e Física”. Existe a variante: “Eu não sou de humanas”, significando que a Literatura e a História podem ser árduas para ele.

Eu confesso: já usei a ideia anterior para explicar o motivo de eu gostar tanto de tudo que se relacionasse a textos, livros, Filosofia, História e minha resistência enorme ao campo das fórmulas e equações. A palavra “vocação” aparece constantemente nas explicações. Vocação significa chamado, algo externo e prévio, quase religioso. Alguém nasce com “vocação” para a música e, quase sem esforço, dedica-se a um instrumento desde cedo. Outros desenham com enorme habilidade e sem nenhuma formação. Vocação funciona como na imagem de Deus para Abrão: “Sai da tua terra e vai”. É algo superior, irresistível e retira a pessoa de onde ela estiver. Penso que pode funcionar no campo religioso, todavia duvido de vocações tão claras e únicas.

O conhecimento é sedutor. Curiosidade é algo quase universal. Crianças são seres muito perguntadores e querem saber o mistério que se esconde por trás de tudo. Por que o balão com gás voa? Um bebê pode não fazer a pergunta, todavia fixa o olhar para o objeto que estica o cordão amarrado ao seu carrinho. Há algo de contraditório ali e que o seduz. Tudo cai, só aquilo parece evitar o solo. Por quê? Os elementos magnetizam a percepção infantil: o ar que se desloca e balança a árvore, o encanto do fogo, a fluidez lúdica da água e o barro que convida ao ímpeto de dar forma à terra. São fatos atraentes e estimulam indagações com matiz científico.

O interesse faz parte da vida. Quando pais e professores são hábeis em conduzir a perguntas cada vez mais intrigantes, os pequenos irão progredindo com alegria. A curiosidade gera o prazer e este pode conduzir ao método. Claro, é sempre mais fácil dar o aparelho para que o pequeno ser fique jogando durante o almoço e, assim, não incomode. Celular-babá é uma tentação muito forte e viciante.

Eu disse que acredito pouco em vocação. O gosto por uma área de conhecimento depende, quase sempre, da maneira como o tema lhe é apresentado. Eu, que pouco ou nada sei de Matemática, posso imaginar muitas aulas nas quais a Geometria pode ser mostrada para olhos que, lentamente, descobrem um mundo feito de linhas, ângulos, formas e volumes e que podem ser transformados em um objeto de atenção. O mesmo ocorre com o fascinante campo da Química. A Filosofia precisa de alguém muito irritado com o mundo para deixar de ser sedutora.

E quando o começo foi ruim, houve reforços negativos e o jovem aluno está no meio do ensino médio com bloqueio quase absoluto em relação à Matemática? O caso fica mais complexo, pois devemos corrigir algo que se estruturou de forma torta. Refazer prédio ruim é mais árduo do que construir um bom. A iniciativa primordial é evitar o “reforço linguístico”: “Eu detesto Matemática”; “Tudo é muito difícil”, “Para que serve isto?”. As frases aumentam as barreiras e criam maiores dificuldades. Você não gosta porque não é elogiado naquele campo e isso exibe a vaidade ferida. O mesmo orgulho deve ser o impulso para adquirir conhecimento de fato. Fim do reforço da fala. Todos podem aprender, cada um de uma forma e em uma determinada velocidade, pregava o pai da didática moderna, Comenius. Se você chegou a uma academia seis meses depois dos outros, pode ser que sua resistência inicial aos pesos seja maior. Decisão primária: pare de odiar a academia, isso é apenas narciso machucado. O que você ama é o brilho de quem está indo bem e se defende dessa dor falando que “não tem jeito”. Não minta para você: nunca houve um esforço real seu na direção daquela área. Estudou uma tarde, cheio de raiva e, tendo tirado nota baixa, lançou a sentença: “Não adianta, não consigo”.

Superado o erro do reforço negativo, o próximo passo é buscar um profissional competente que corrija erros da fundação. Mais importante do que estudar a inequação da prova da semana que vem é a tarefa de descobrir a linguagem matemática e seu universo. Um tutor, um bom professor privado onde for possível, a procura por tutoriais na internet (mais econômica), o estabelecimento de metas diárias e semanais e recompensas combinadas (o mecanismo do hábito e do reflexo demanda recompensas) são bons começos. Se a nota anterior foi três, um projeto desejável é elevá-la para cinco. O professor oficial da área deve ser informado de que há um esforço pessoal e familiar e que ele pode ajudar sugerindo atividades, exercícios complementares, etc. Por vezes, existindo uma resistência pessoal entre aluno e professor, um encontro privado após a aula com um dos pais presente pode ser um movimento para desfazer a ideia, nem sempre válida, de que o professor “não gosta de mim”. Exponha sua meta, solicite indicações, crie empatia. Não peça nota ou proteção especial: demonstre dedicação extra, prometa disposição visível, busque sair da zona de conforto mais sólida da vida: o fracasso.

Essas são medidas iniciais e implicam envolver a escola, o aluno e a família. Tudo muda se a criança ou o jovem se incluir na resposta de superação. Assim, ao final de um empenho com resiliência, o que pode acontecer é secundariamente uma melhoria na área até então “emperrada” e, acima de tudo e de forma principal, a descoberta de que o esforço pessoal é uma chave fundamental. Se o aluno nada souber sobre icosaedros ou iconoclastia bizantina, é um dano menor ao futuro dele do que continuar acreditando em soluções mirabolantes para o saber. Preguiça existencial e pensamento mágico são um obstáculo maior do que “jeito” para humanas ou exatas. Boa semana para todos nós.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.