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Glória nos Céus e paz na internet

29 de Março de 2020 às 00:01

Dom Julio Endi Akamine

Em algumas ocasiões as redes sociais e a internet parecem mais um campo de guerra, no qual se acumulam muitos mortos e feridos virtuais. Pessoas de trato polido e calmas se revelam, nas redes sociais, agressivas e irritadiças. Isso constato não só nos outros, mas sobretudo em mim mesmo. Percebo em mim que o “monstro” convive junto com a figura pacata do “médico”. Com o distanciamento social e com as divergências dos governos no modo como cada posição antagônica julga mais adequado o combate à pandemia, trazemos virtualmente o bate-boca real para dentro de nossas casas e de nossas famílias.

Não tenho solução para estabelecer a paz na internet. Gostaria de fazer, porém, algumas reflexões que, espero, possam contribuir positivamente não só para este momento de crise mas também para construirmos juntos um “continente virtual” mais humano.

Muitas discórdias que me fazem sofrer, na realidade não são minhas, são dos outros. Por isso, a primeiríssima providência para contribuir para a paz na internet é não importar para dentro de nossa vida o embate que é dos outros. Isso não é alienação ou indiferença. É um limite que precisamos estabelecer para não impor aos nossos grupos de WhatsApp uma briga alheia.

E quando as discórdias já se impuseram em nossos grupos virtuais? É o momento de aprender enfrentar as diferenças pessoais com lealdade e perseverança. As diferenças podem ser muito grandes: desde posições teóricas e doutrinais até comportamentais. A variedade de opinião é tão vasta e a multiplicação das discrepâncias é tão rápida que temos a impressão de não ser possível uma convivência virtual que seja normal a não ser em grupos muito fechados em si mesmos e muito beligerantes em relação aos outros que divergem ainda que minimamente.

Precisamos tomar consciência de que nem toda diferença é insuperável. O fenômeno do pluralismo é tão antigo quanto a humanidade. Só para citar um exemplo mais familiar aos cristãos: no Antigo e no Novo Testamentos podemos constatar um sadio pluralismo teológico. Ao ler os vários Livros Sagrados constatamos não somente diversidade de estilos, mas também de modos diferentes de apresentar as verdades reveladas por Deus. Os quatro evangelhos são um testemunho de um saudável pluralismo convergente e complementar. A pregação apostólica nunca se apresentou como um todo monolítico. Sem esse pluralismo querido pelo próprio Jesus Cristo, a Igreja teria acabado por se fechar numa seita.

É verdade que o pluralismo de hoje é incomparavelmente mais acentuado do que os de tempos passados. Isso se deve ao fato de que a cultura atual já não é mais una. Em tempos passados, o ambiente cultural era relativamente homogêneo, falava-se uma linguagem cultural comum, mesmo que os idiomas fossem diferentes. Hoje, ao contrário, o mundo intelectual é portador de filosofias diferentes e, muitas vezes, dominado por ideologias antagônicas. É preciso entender que o que acontece no mundo virtual decorre da amplificação e disseminação de uma cultural pluralista e, às vezes, fragmentada.

Para construir a paz virtual, precisamos fazer um esforço inteligente em distinguir o pluralismo complementar do pluralismo contraditório. O pluralismo complementar deve ser convertido em pluralismo em movimento para a unidade. Afirmações diferentes nem sempre são contraditórias; elas podem se encontrar numa síntese que nos ajuda a ter um conhecimento menos unilateral, tendencioso e fanático. Assim a síntese entre afirmações diferentes não suprime as diferenças, mas as supera, fazendo com que tenhamos um conhecimento mais rico da realidade.

O primeiro contato com uma opinião diferente da minha, em geral, não é fácil e exige um esforço pessoal de compreensão do outro. Quando se se depara com uma opinião diferente, é preciso exprimir o próprio juízo com sinceridade a fim de provocar no outro uma resposta mais profunda e esclarecedora, colaborando assim, para que uma divergência se torne convergência, se isso for possível. Assim as nossas divergências virtuais nos ensinarão que elas não devem ser aceitas com resignação, mas aproveitadas responsavelmente para o crescimento recíproco.

Para concluir, recordo algumas dicas que acho muito oportunas para a nossa convivência virtual.

Diante de opiniões divergentes, devemos cultivar uma predisposição fundamental: a de estar mais disposto a defender as afirmações dos outros do que a de condená-las. Se não puder defender a posição do outro, não o exclua, procure saber de que maneira o outro as compreende e, se o outro estiver enganado na sua concepção, não o ofenda, mas o corrija com amor. Se nem isso for suficiente, não o delete, tente mais vezes e com outros argumentos, que o outro compreenda o seu erro, para que compreendendo retamente, o outro possa crescer e amadurecer no seu conhecimento.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.