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Fratelli tutti

11 de Outubro de 2020 às 00:01

Dom Julio Endi Akamine

No dia da memória litúrgica de S. Francisco de Assis, o Papa publicou a Encíclica Fratelli tutti. Alguns criticaram o título como se o Papa tivesse excluído as mulheres da sua mensagem. É preciso entender que “Fratelli tutti” é uma citação textual de um escrito de S. Francisco de Assis e que o Papa, logo no início, esclarece que deseja se dirigir a todos “irmãos e irmãs” para lhes propor uma forma de vida evangélica.

Outros criticaram o Papa por ter se inspirado no Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb para escrever a encíclica. Se lermos com atenção a Encíclica, veremos que o Papa não afirmou que se “inspirou”, mas que se sentiu “estimulado” por ele. Inspiração e estímulo são coisas bem diversas. A inspiração da Encíclica são o Evangelho e a experiência de fé em um mundo despedaçado. Por isso a Encíclica é católica e dirigida aos católicos e às pessoas de boa vontade.

Outros, por fim, repetem a infundada crítica de um alinhamento político do Papa com os socialistas e comunistas, de que a Encíclica fala pouco de Deus e de Jesus e se concentra unicamente em questões sociais. Uma leitura atenta da encíclica, porém, nos fará ver que toda ela fala de Deus e de Cristo. As questões sociais e humanitárias são um desdobramento do que Cristo nos revelou sobre Deus: Deus é amor. Além disso, o Papa não se apoia em ideologias socialistas, mas na visão cristã da sociedade e da economia, seguindo a Doutrina Social da Igreja.

Deixando de lado essas polêmicas inúteis. Vamos ao conteúdo da Encíclica.

As sombras de um mundo fechado (cap. 1) se propagam sobre o mundo e deixam feridos à beira do caminho que são os marginalizados e os descartados. As sombras afundam a humanidade na confusão, na solidão e no vazio.

Ao longo do caminho nos deparamos com um estranho ferido (cap. 2). Perante ele podemos ter duas atitudes opostas: seguir em frente ou nos deter, incluir o ferido ou descartá-lo. Da atitude que tomamos depende o tipo de pessoa que somos e o projeto político, social e religioso que abraçamos.

Deus é amor. Uma vez que somos amados por esse Amor e o compartilhamos com os outros, somos chamados à fraternidade universal. A fraternidade que brota de Deus Amor é aberta. Nele não há mais “os outros”, nem “eles”. Só há o “nós”.

Nós desejamos com e em Deus um mundo aberto (cap. 3): sem muros, sem fronteiras, sem excluídos, sem estranhos. Para que isso seja possível, recebemos e queremos um coração aberto (cap. 4). Assim vivemos a amizade social, buscamos o bem moral, a ética social, conscientes de que somos parte de uma fraternidade universal. Somos chamados ao encontro, à solidariedade e à gratuidade.

A fim de viver em um mundo aberto com o coração aberto, é necessária uma política melhor (cap. 5). O que significa “política melhor”? Consiste em uma política para o bem comum e universal, uma política para e com o povo. É urgente um amor político, que integre a economia em um projeto social, cultural e popular.

Outra urgência atual é a de saber dialogar. Esse é o caminho para abrir o mundo e construir a amizade social (cap. 6). É também a base para uma política melhor.

O diálogo respeita, cria consensos e busca a verdade; dá lugar à cultura do encontro e faz com que o encontro se torne estilo de vida. Além disso, temos de curar as feridas do desencontro e percorrer percursos do reencontro (cap. 7).

Buscamos curar as feridas e restabelecer a paz. Para isso precisamos de audácia e de verdade. Nesse sentido, a verdade histórica é companheira inseparável da justiça, da misericórdia e do perdão.

As religiões são chamadas ao serviço da fraternidade no mundo (cap. 8). A partir da abertura ao Pai de todos reconhecemos a nossa condição universal de irmãos. Para os cristãos, o manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo: daí surgem as nossas ações e compromissos. Para nós, este caminho de fraternidade tem também uma Mãe chamada Maria.

Perante os feridos pelas sombras de um mundo fechado, que jazem à beira do caminho, o Papa Francisco nos chama a fazer nosso o desejo mundial de fraternidade, que começa com o reconhecer que somos Fratelli tutti, todos irmãs e irmãos.

Dom Julio Endi Akamine é, arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.