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Filmes da Netflix: “La memória del agua”

16 de Abril de 2021 às 00:01

Filmes da Netflix: “La memória del agua” Amanda (Elena Anaya) empreende luta sofrida contra o luto complicado. Crédito da foto: Divulgação

Nildo Benedetti - [email protected]

Já analisamos nesta coluna três filmes da Netflix que tratam do tema do luto sob perspectivas diversas: “Pais e filhas”, do italiano Gabriele Muccino; “Quando a Vida Acontece”, da austríaca Ulrike Kofler; e “Pieces of a Woman”, do húngaro Kornél Mundruczó. Este “La Memória del Agua”, do chileno Matías Bize, também trata do mesmo assunto sob um ângulo diferente dos outros três.

Amanda e Javier perdem um filho de quatro anos afogado na piscina. O filme não mostra o acidente e nem fotos da criança, o que é uma das suas virtudes: a de se concentrar nas fraturas que o acidente trouxe na vida do casal.

O processo de elaboração do luto é extremamente complexo, carregado de pensamentos e sentimentos de vários tipos, muitas vezes contraditórios. De modo resumido, ele pode ter várias fases variáveis, no tempo e na intensidade, de pessoa para pessoa. De início a negação, em que o enlutado fica desligado da realidade que o faria sofrer. É seguida por sentimentos de raiva pela injustiça da perda, quando pode se revoltar contra Deus ou recorrer a Ele. Depois a depressão, em que reconhece que a perda é irreparável. E finalmente a aceitação. Mesmo quando o enlutado consegue integrar a morte à sua existência, ele não se desapega do ente perdido, que será sempre lembrado com saudade.

Apesar do sofrimento, Javier quer dar continuidade à família, incorporando a perda do filho no histórico familiar. Mantém a esperança de retorno à vida conjugal, faz projetos e se aproxima do pai porque aprendeu pela experiência o que significa perder um filho.

Amanda ainda está presa à revolta pela perda e manifesta a sensação de abandono e de raiva contra Deus e contra todos, porque não conseguem amenizar sua dor. Diz a Javier: “Estamos sós no Universo e ninguém se importa com isso. Todos: tu, eu, as pessoas que amamos. Estamos todos perdidos, à deriva, esperando que alguém, um pai, nos venha salvar. É mentira. Não existe ninguém e ninguém se importa conosco.”

A passagem da depressão para a aceitação é particularmente demorada e, em algumas pessoas como Amanda, pode se prolongar indefinidamente. A essa condição de não superação do luto, Freud chamou de luto patológico (atualmente é chamado luto complicado). A melancolia é o sentimento que caracteriza o luto complicado. Ela se origina no nível inconsciente, ao qual o indivíduo tem acesso restrito. Por isso, o melancólico apenas sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém, pelo menos não com a clareza que poderia levá-lo a procurar obter de outras fontes parte do que foi perdido e, daí, alcançar algum conforto.

O psicólogo, psiquiatra e psicanalista britânico John Bowlby apontou intensa auto-recriminação e a necessidade de autopunição do enlutado melancólico, como se o luto perpétuo se tivesse convertido num dever sagrado com o morto, por meio do qual o sobrevivente deverá castigar-se e expiar suas culpas por toda a vida. É o que se observa quando Amanda diz a Javier: “Por um momento, lembrei-me de quando estávamos bem, antes de Pedro, quando namorávamos. Isto é como apagá-lo, como se ele não tivesse existido. (...) Se formos felizes, ele não existe, é apagado do Universo.”

Na próxima semana escreverei sobre “O mediador”

Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec