’Estamos em crise cultural?’

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Crédito da foto: Divulgação / Arquivo JCS

Crédito da foto: Divulgação / Arquivo JCS

Leandro Karnal

Começamos a nos despedir da segunda década do século 21. Historicamente, existe uma tendência antiga de se considerar o momento em que se vive como de crise profunda e de decadência. Com raros momentos de otimismo, o mundo está em declínio desde a inauguração das pirâmides de Gizé. De Boécio no século 6º a Freud no 20, sempre houve quem alertasse seus contemporâneos sobre ruínas, desilusões, fim de utopias ou um mal-estar na civilização. O rastro vai longe. O segundo Templo de Jerusalém, reconstruído após a tragédia da invasão da Babilônia, era pálida sombra do anterior construído por Salomão. O projeto de obras de Herodes, o grande, tinha um sentido de cooptação política, mas sempre seria um Santo dos Santos sem a Arca da Aliança. O passado sempre foi e será visto como mais glorioso, opulento, pacífico e, acima de tudo, mais culto.

Estabelecido o fundo moral da construção de uma ideia de decadência, sejamos objetivos. Estamos diante de um imenso e necessário debate sobre financiamento cultural. Os modelos oficiais com renúncias fiscais, apoios públicos e a participação (outrora dominante) de empresas estatais, como a Petrobras, estão sob ataque ou com dificuldades para obter recursos. Mesmo os tradicionais centros culturais de bancos públicos sofrem investidas. O episódio da exposição do Santander em Porto Alegre (2017) mostrou que o debate também envolve, além do financiamento, a ideia de decidir que tipo de arte ou expressão cultural pode e deve ser trazida ao público (e para qual público). No fundo, sempre a mesma questão: quem controlaria a orientação cultural? Seria uma crise de política cultural ou um exercício de poder?

Houve algo similar há 30 anos. O presidente Collor extinguiu a Embrafilme e tivemos uma seca violenta na produção cinematográfica. O mercado cinematográfico teve de se reorganizar. Algumas lacunas foram preenchidas pelas já citadas estatais. O grande amparo, desde 1991, tornou-se a Lei Rouanet, hoje igualmente sob invectiva frontal.

A polarização está no campo cultural também. Temas como o Prêmio Camões atribuído a Chico Buarque, a biografia da atriz Fernanda Montenegro, o filme “Bacurau” e a cinebiografia de Marighella trouxeram o duplo debate sobre recursos de financiamento e visão política da produção da arte. A participação do poder público atingiu até a mais popular festa do Rio, o Carnaval. A Flip de 2019 viveu momentos de polarização política e a escolha do nome da poeta americana Elizabeth Bishop como homenageada de 2020 já incendiou os meios literários e da internet. O debate é sempre bem-vindo. Precisamos reaprender que o contraditório é positivo e parar de conjugar o péssimo verbo “lacrar”.

O ano foi pesado para a música, pois as orquestras foram atingidas em cheio pela falta de financiamento. Iniciativas importantes como o Projeto Guri sofreram abalos e incertezas. A crise é anterior a 2019. A Banda Sinfônica do Estado de São Paulo foi dissolvida em 2017. A brilhante Jazz Sinfônica resiste, aumenta sua popularidade e mostra como alguns abnegados podem manter algo tão belo. A Osesp, melhor sinfônica do Brasil e entre as melhores do mundo, é uma ilha de produtividade em meio ao mundo Mad Max que a cerca, literalmente. No esplendor da Sala São Paulo, produzem-se concertos didáticos, milhares de ofertas gratuitas e noites inacreditáveis, como foi no dia 12 de dezembro, com a Nona Sinfonia de Beethoven marcando a abertura do ano jubilar 250 do mestre. Com a tradução em português a cargo de Arthur Nestrovski e inserções de músicas em diálogo com a obra, a plateia foi mesmerizada pela batuta de despedida da regente Marin Alsop. Ali fulgiu uma vela poderosa em meio a trevas assustadoras.

O ano de 2019 levou lendas como Bibi Ferreira e talentos no apogeu da criatividade como Fernanda Young. O diretor Antunes Filho, pilar de uma revolução teatral, também se foi. Em todos os campos desponta uma moçada muito interessante. Precisamos de outro texto para indicar alguns nomes.

A crise das livrarias continua a fazer estragos. Temos autores e leitores, falta dinheiro para livros e faltam lugares para vender os livros. Há reações, com ressurgimento de pequenos espaços. Como em toda época de crise, as editoras apostam em obras com grande apelo e autores já famosos em mídias digitais. Escasseiam os experimentalismos, explodem os títulos com palavrões. O debate é infindável: o nariz torcido de alguns diante do sucesso popular de outros. O preço da sobrevivência será sempre o da vulgarização?

Será o fim da cultura como a conhecemos? Sim, sempre, pois emergem novas formas culturais. O término do meu mundo não é o término do mundo. Mesmo sem ter consciência da crise de financiamento da cultura, o jovem que frequenta um baile funk de São Paulo descobrirá que a visão da cultura atinge todos, alguns de forma fatal. No fundo, 2019 continua com o dilema, agora chaga aberta: quem tem direito a definir o que é cultura? As exposições sobre “arte degenerada” ainda rondam nossas consciências no campo estético e evocam memórias autoritárias. Eu desejo um 2020 sem donos da cultura, sem vozes únicas, sem comissários do povo ou guardiões da pureza da cultura nacional. Desejo um ano novo múltiplo, com Beethoven e funk, música lírica e Anitta dançando. Que toda arte transgrida, desinstale, agite e perturbe. Que morra todo Ministério da Verdade.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.