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Escrever se presta ao quê?

11 de Agosto de 2019 às 00:01

Escrever se presta ao quê? Crédito da foto: Arquivo JCS

Leandro Karnal

A coluna que seus olhos começaram a percorrer é minha crônica de número 300 no jornal O Estado de S. Paulo. A primeira tentação de toda pessoa que faz muito alguma coisa é aconselhar sobre o ato em si. É clássico vício de idade. Como lembra o azedo François de la Rochefoucauld, não podendo dar mais maus exemplos, os mais velhos se consolam dando conselhos.

Para que tenhamos bons conselhos, seria bom buscar pessoas que possuem, além da experiência, sabedoria e inteligência. Quando você admira o estilo e a criatividade de alguém que tem por ofício a escrita, vale a pena ver o que aquela pessoa tem a dizer. Por exemplo, aproveitei muito os caminhos de Mario Vargas Llosa em “Cartas a um jovem escritor”. Da mesma forma, admirando a obra do “Kafka do Oriente”, o japonês Haruki Murakami, li “Romancista como vocação”. São dois bons exemplos de autores consagrados pensando sobre o que fazem. Meus queridos amigos Rodrigo Petronio e Noemi Jaffe fazem oficinas de escrita criativa em São Paulo. Por fim, cada bom livro é uma escola de método. Destrinçar, no sentido de separar fios, esmiuçando método e conteúdo, é tornar cada bom livro uma aula magistral.

Nada posso acrescentar aos conselhos de gênios de verdade. Resta-me perguntar o motivo de continuar a escrever. Trata-se de trabalho que exige método. Nunca conheci um escritor que afirmasse com felicidade como pode se isolar e empreender a jornada de organização de ideias e tramas em narrativas. Todos reclamamos sem cessar das interrupções em casa, das “distrações” permanentes e da incapacidade de que o ato de redigir seja visto como associado à concentração.

Não escrevo por dinheiro. Não se trata de reivindicação por melhores proventos, apenas que o dinheiro obtido com direitos autorais ou pagamento de textos existe, tem significado, mas eu existiria sem ele.

Resta examinar a vaidade. Sim, ela é um elemento mais significativo como hipótese. Ter ideias que são publicadas por um dos maiores jornais do País, ser visto nas bancas e nos tablets, ter textos constando de concursos e ser citado por outros autores, causar admiração em alguns e ódio em outros: tudo faz parte da gramática normativa da exposição pública. O argumento do orgulho é muito mais expressivo do que o do dinheiro. Sou mais vaidoso do que ambicioso materialmente. Todavia, estaria aqui o impulso? Talvez fosse muito maior na década de 1990, quando lancei meus primeiros livros. Talvez contivesse uma parte expressiva da verdade nas cem primeiras crônicas, nas cem primeiras entrevistas de televisão, nas cem primeiras vezes em que cheguei à luz da ribalta. Sim, existe a vaidade, ela é o jovem sedutor admirado do seu poder: há um momento no qual até o mais ousado Don Juan cansa. A fama brilha e o orgulho deseja os elogios como a terra árida anseia pela água escassa. Creia-me, queridíssima leitora e estimadíssimo leitor, depois de muitas borrascas e chuvas contínuas, a terra se encharca. Sim, existe a vaidade, o primeiro pecado capital, como um dia existiu a luxúria. A idade ajuda a desgastar ambos.

Afinal, por qual motivo eu escrevo? Penso sempre no meu leitor que, em filas de autógrafos ou em cartas, explica como tal ideia se articulou com a experiência dele e transformou algo. Nunca pensei a objetividade do querido e talentoso Bernardo Carvalho que, em momento mais cansado, chegou a dizer que o leitor “se ...”. Para mim não. Ser lido e entendido ainda funciona como baliza, entretanto não me impulsiona. Aprendi, não sem dor, que sou responsável por uma parte pequena da compreensão. Na sociedade entre quem escreve e quem lê, cada um é autônomo da divisão do capital acionário.

Acho, hoje, que escrever é um ato solitário de ordenamento do meu universo interior. Colocar ideias em texto é uma busca individual que se comunica com outros. Redigir elabora meu mundo interno, desafia-me, lima meu caráter e continua minha formação.

Quero algum dinheiro, minha vaidade anseia por fama e meu ego infla na sua infantilidade ainda desejante. Porém, a maior vaidade e a cobiça mais flamejante ainda residem em mim. Eu quero me entender e quero apreender o mundo ao meu redor.

Fechado em muitos baús, preservo-me do mundo escrevendo para todos, e narrando tudo. Se alguma vez o meu isolamento lançou um sinal de fumaça que seu isolamento compreendeu ao longe, querida leitora e estimado leitor, essa generosidade é uma alegria. Somos náufragos de nós mesmos em arquipélagos de insegurança vagamente conectados. Jogamos garrafas ao mar ao escrever e ao ler. Nada entendemos sobre quem escreveu aquilo, porém tudo descobrimos quando nos apropriamos delas. Obrigado, do fundo do coração a todos vocês. Obrigado aos revisores que fazem um trabalho extraordinário. Os primeiros 300 textos são sempre mais difíceis. Boa semana para todos nós.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.