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Ernest Lörenz Böttner. Lorenza Böttner. O corpo

23 de Julho de 2019 às 00:01

 

Ernest Böttner nasceu em 1959, no Chile, em uma família de imigrantes alemães. Como quase todas as crianças, tem muita energia e alegria, não resiste ao ver um ninho de passarinho que estava no alto de um poste. Sobe. Recebe uma descarga de alta tensão e passa vários dias entre a vida e a morte. Seus braços são amputados para garantir que viva. E assim foi, viveu. Passou meses nos hospitais entre dores e mesmo uma tentativa de suicídio. As dores e a morte o levarão para frente, buscando celebrar a vida.

As melhores terapias estavam na Alemanha e sua mãe o levou para as “clínicas para deficientes” e os chamados “filhos da Talidomida”, remédio receitado no final dos anos 1950 para evitar enjoo das grávidas mas que teve como efeito colateral a má formação congênita dos braços e pernas dos fetos.

Entretanto, Ernest não é um paciente comum. Recusa-se a ser educado como um deficiente ou de ter próteses para simular braços. Prefere pintar, desenhar, dançar. Assim, entre 1978 e 1984 estuda na Escola de Arte e Desenho de Kassel. Neste momento muda seu nome para Lorenza Böttner e reconstrói o corpo a partir de outras subjetividades e, em todas elas, é um corpo dissidente.

Como afirma Paul Beatriz Preciado, curador da exposição “Réquiem por la Norma”, em Barcelona: o mais excepcional do excepcional em Böttner não é a qualidade de seu trabalho, mas a criação de um espaço no qual o corpo disfuncional possa ser representado fora do freak show ou da patologia que Böttner não aceitou ser reconhecido como deficiente ou incapacitado, porque rejeitava as estruturas normativas que se separavam do normal e do patológico, da mesma forma que negava a divisão entre homem e mulher.

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A exposição de Lorenza Böttner apresenta a trajetória, que parte da infância até a morte em janeiro de 1994 por complicações decorrentes da Aids, e na qual podemos ver dois vídeos com suas performances. Em um deles, o documentário de Michael Stahlberg, “Lorenza -- Retrato de um artista -- Docu Short”, mostra o cotidiano da artista. No outro vídeo, vemos sua performance como Petra, mascote dos jogos paraolímpicos de 1992 criada por Javier Mariscal com ajuda da própria Lorenza, na abertura dos jogos.

Em seus autorretratos fotográficos estão críticas ao modelo estético ocidental de um corpo industrializado e maquiado por convenções naturalizadas socialmente e para a qual a diferença é uma anomalia, patologia, aberração que deve ser evitada ou, talvez, sentir pena... e evitá-la.

A força das imagens eróticas nas quais Lorenza Böttner aparece em posses femininas mas com seu rosto barbado e pelos no peito querem transformam o ver e o sentir para além das convenções. Ou quando coberta de gesso, encarna a Vênus de Milo estática, diante de um público que, estupefato, vê a Vênus abrir os olhos, descer de seu pódio, perguntar ao público “O que vocês pensariam de uma arte que ganha vida?” e dançar. “Frente a passividade e o silêncio impostos sobre o corpo com diversidade funcional, a dança e a voz são técnicas de empoderamento social que buscam aumentar a potência de atuar”, afirma Paul Preciado no prospecto da exposição.

Somos múltiplos, mas parece que nos vemos apenas uno, nos representamos para nós mesmos com uma convenção imposta pela educação e pelos valores sempre do passado. Não educamos o olhar e as representações para o futuro, são poucos os professores que conseguem isso. Minha professora, a Doutora Maria Lúcia de Amorim Soares, sim o sabia ensinar. De frente para as obras de Lorenza Böttner, ela também estava a me fazer ver além de um homem ou de uma mulher, ou de um deficiente que se fez artista pelas circunstâncias da vida. Era possível ver uma parte da sociedade brasileira que caminha com passos do passado e outra que caminha. O leitor que se identifique com a sua.

Paulo Celso da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso. Doutor em Geografia Humana. E-mail: [email protected]