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Epifania de Shakespeare

06 de Janeiro de 2019 às 00:01

Epifania de Shakespeare Crédito da foto: Vanessa Tenor

Leandro Karnal

No filme “Shakespeare apaixonado” (Shakespeare in love, John Madden, 1998), após a exibição da pungente tragédia de Romeu e Julieta, a atriz que faz a rainha Elizabeth I (Judi Dench) pede que, na próxima ocasião, o dramaturgo enfatize um tema mais leve e divertido, talvez a festa da Epifania (6 de janeiro). A peça do Bardo existiu mesmo, chamou-se, em inglês, “Twelfth night” (décima segunda noite). Em português, batizamos a obra como “Noite de Reis”.

Para muitos, o texto está entre as melhores comédias de Shakespeare, composto bem perto da criação do famoso Hamlet. Existe certa lógica na ficção do “Shakespeare apaixonado”, pois o tema do amor impulsivo contrariando a ordem familiar e social de Romeu e Julieta continua forte em “Noite de Reis”. A paixão desregula as coisas, perturba o sentido natural do mundo e é um desequilíbrio que deveria ser minimizado e não exaltado. Shakespeare, insistamos sempre, não era um romântico.

Os nobres da Ilíria, região do enredo, deveriam cuidar da administração, da ordem pública e do exemplo para todos. Pelo contrário, viviam envolvidos em cartas falsas, trocas de gênero e seduções pueris. Focam demais no seu mundo afetivo pessoal e pouco na objetividade social. A trama gira em torno dos enganos de um naufrágio de gêmeos, de jogos masculino/feminino (Viola se disfarça de homem para atingir seus objetivos) e de amores enganados. A cena deveria ser ainda mais hilária no fim do século 16, pois os papéis femininos eram feitos por homens vestidos de mulher. No caso em questão, temos um homem que deveria ser uma mulher que estaria disfarçada de homem.

A “Noite de Reis” era o momento em que, 12 dias após o Natal, muitas comunidades cristãs trocavam presentes. Em ramos de cristianismo ortodoxo, até hoje, é a verdadeira noite de Natal, recordando o encontro dos três magos do Oriente com Jesus. Na Inglaterra do final da era elisabetana, era um dia de festas e de alegrias, com tradição de peças teatrais.

As celebrações são, com frequência, momentos de inversão do mundo. A pobreza de comunidades agrárias alemãs é interrompida pelos três dias do kerb, festividade de comida abundante e descontração avessa à labuta do duro cotidiano. Os povos andinos pré-colombianos (como os chamados incas) eram proibidos de beber líquidos fermentados fora de festas. Só poderia existir uma embriaguez sagrada, beber em celebrações em honra aos deuses. No carnaval medieval e moderno, permitiam-se inversões fora da ordem social. Mendigos poderiam usar roupas não condizentes com sua classe social e o mundo, momentaneamente, ficava de ponta-cabeça, como analisou o genial Mikhail Bakhtin. No carnaval tupiniquim, conspícuos machões permitem-se a roupa feminina e os trejeitos, colocando em público uma faceta nova (ou não) no único dia permitido do ano para ser antípoda de si. A festa é o mundo invertido e isso é um atrativo poderoso para muitos.

A peça “Noite de Reis” começa com uma canção ambígua do duque Orsino, governador local, falando do excesso e dos seus desejos e riscos. O amor é insaciável, pois “recebe como o mar”, ou seja, nunca se preenche e continua sendo “o dono eterno da imaginação”. A dor do governante é o amor não correspondido por Olívia que, por sua vez, acaba apaixonada por Viola, quando essa, travestida de Cesário e a mando de Orsino, lhe faz a corte em seu nome. De novo, o brilho da comédia: uma mulher ama outra mulher que ela imagina que seja um homem que, de fato (na era elisabetana), é interpretada por um ator homem que imagina ser uma mulher.

O amor do duque por Olívia é voz corrente, pois logo no início já sabemos que o capitão que resgatou Viola do naufrágio comunica o fato à recém-salva. O amor é complicado e sinuoso e ninguém parece ser retribuído. A verdade flui mais nas falas do brilhante Feste, o Bobo, que surge ao fim do primeiro ato. Tal como o primeiro coveiro da peça Hamlet, o Bobo fascina pelas frases certeiras e pertinentes que profere. É o verdadeiro “elogio da loucura” de Erasmo, quem não deveria é o mais sábio e os sábios tornaram-se idiotas. Também é Feste que diz a Olívia que não deve chorar pelo irmão morto, pois ele está no inferno. A personagem de luto dispara a certeza: “Ele está no céu” e o Bobo a fere com a verdade óbvia: então por que chorar por alguém que se encontra na perfeita felicidade? O Bufão da peça é um papel que deveria ser cobiçado por bons atores porque é o mais extenso como personagem popular e nonsensical da pena shakespeariana. Um tipo misto de Pirandello e Ionesco em pleno coração do verso clássico de “Noite de Reis”.

Como sempre, a comédia segue com a capacidade reflexiva da linguagem do autor. Ninguém apenas comunica que está bem ou se retira simplesmente, todos traçam elipses filosóficas sobre cada ato ou sentimento e isso, virtude na era de ouro Tudor, pode ser visto como defeito em época de WhatsApp.

Uma boa sugestão para o modorrento mês de janeiro. Recomendo a tradução de Bárbara Heliodora. Inteire-se do final do enredo divertido e de revelações surpreendentes, cartas falsas, castigo de Malvólio (o pretensioso cortejador de Olívia), o triunfo dos casais enfim reorganizados e o sagaz e melancólico discurso final de Feste. Uma boa dica para um Dia de Reis. Bom domingo para todos nós!

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado e escreve para o Cruzeiro do Sul.