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Emérito odontólogo

23 de Fevereiro de 2019 às 00:01

Emérito odontólogo Crédito da foto: Vanessa Tenor

Edgard Steffen

Sedare dolorem divinum opus est

(Hipócrates)

Há 18 anos encerrei meu consultório. Hoje alegra-me encontrar gente que em mim confiou e me deu a honra de tratar de seus filhos. Há muito não os via. Num restaurante encontrei Salete e Jarbas almoçando com a filha e as alegres e afetivas netas. Cumprimentamo-nos efusivamente. No 21 deste fevereiro fomos -- eu e Adélia -- convidados ao jantar comemorativo dos 90 anos do profissional e amigo, que tanto prezamos. Lembro-me perfeitamente o dia em que o conheci.

Vocês já perceberam que dói mais a dor sentida quando estamos sozinhos? Foi o que aconteceu comigo quando estudava para o vestibular e morava com meu irmão. Estava só. Em férias, meu hospedeiro viajara. A dor, insidiosa em seu início, aumentou a ponto de acordar-me na madrugada. Pulsava. De pouco adiantou o analgésico. Acabei contemplando o despertar do dia. Ao olhar-me no espelho, percebi que portava os quatro sinais de inflamação descritos por Celsus (30 aC -- 36 dC). “Signa inflammationis quatuor sunt: rubor et tumor, cum calor et dolor”. Vermelhidão, inchaço, aumento da temperatura e dor. Tomei mais analgésicos. Pouco ou nenhum efeito. Nenhuma condição para continuar estudando.

Desci para o centro e entrei na primeira porta onde enxerguei a placa “Dentistas”. Era quase hora do almoço. O jovem profissional não se aborreceu por atender quem sequer havia marcado a consulta nem perguntou se teria dinheiro para pagar pelo procedimento. Examinou e localizou a origem do problema. Ciente de que eu era postulante à carreira médica, pacientemente explicou-me o que estava acontecendo com a raiz afetada e o que faria. Aplicou o anestésico e, abrindo o canal, tirou a dor como se o fizesse com a mão. Nunca eu havia experimentado tão nítido e rápido alívio. Provou-me a justeza do aforismo hipocrático que ilustra este texto. Divino trabalho é aliviar o sofrimento.

Anos mais tarde, tive a honra de cuidar dos filhos daquele dentista. Mais que isso, nossos filhos estudaram no mesmo colégio, participaram das festinhas de aniversário e campeonatos de judô. Um deles, universitário de Agronomia, fazia questão de ser atendido por mim até a idade adulta. Barba, roupa descolada com direito a jeans, tênis e bolsa a tiracolo, esperava sua vez no meio das mães e crianças.

Atendi também netas do casal. Nos anos de convivência com aquela família pude sentir quanto o bom relacionamento médico/paciente ajuda na resolução dos agravos à saúde. A empatia, entre nós estabelecida, e a fidelidade no cumprimento das prescrições ajudava na eficácia dos tratamentos.

Nos atendimentos a domicílio havia um porém. Enorme pastor alemão fazia com que eu tocasse a campainha e rapidamente tirasse a mão. A bocarra de Prinz aparecia na grade e os latidos avisavam-me de que sua missão era impedir que estranhos entrassem no pedaço. Numa ocasião, em que o pai viajara, uma das crianças teve febre muito alta. A mãe teve que esperar clarear o dia para que a empregada prendesse a fera e pudessem chamar o pediatra.

Certo dia, solicitaram minha presença. Terminado o consultório, plena noite, fui para lá. Como de costume, certifiquei-me de que a fera não estava perto. Como de costume, apertei a campainha e velozmente puxei a mão para fora da grade. Surpresa. Nenhum latido. Jarbas veio tranquilamente abrir o portão para receber-me. Algum ladrão de canídeos de raça, roubara o temível pastor alemão.

Seja esta crônica minha homenagem ao Emérito Odontólogo Dr. Jarbas da Rocha Lara na comemoração de seu 90º aniversário. Obrigado pela amizade, confiança e pelo episódio narrado por um assustado e dolorido vestibulando de Medicina.

Edgard Steffen é médico pediatra e escreve para o Cruzeiro do Sul -- [email protected]