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É brincadeira!

12 de Outubro de 2018 às 05:00

José Feliciano

Sim, você foi criança um dia, acredite! A infância deixa marcas para toda vida, uma delas no primo que até hoje veste saco de dormir fechado até a nuca para disfarçar a marca que você, achando que era o Zorro, aquele da marca, da espada, fez na testa dele. Coisas de crianças. Lembra o chiclete que você mascou por anos? Afinal, não era qualquer chiclete, era um espólio de família que ficou grudado na dentadura do seu avô, você achou e começou a mascar até quando resolveu grudar, de brincadeirinha, na cabeça da sua irmã. Se ela ficou com uma pequena falha no cabelo, hoje é só lembrança da infância; depois que ela se mudou para o México e passou a usar sombrero ficou -- quase -- imperceptível. E o jogo da velha que você e seu irmão fizeram com um prego no sofá novo da sua mãe? Pelo tamanho dos cortes foi um jogo da velha de ida e volta com prorrogação e cobrança de pênaltis. Ao ver o estado do sofá a empregada não sabia se chamava sua mãe ou um legista. Até hoje seu pai fica com os olhos marejados de lembrar daquele dia e da conta do tapeceiro.

Na infância, impressão digital de brincadeira é cicatriz de joelho esfolado. O primeiro tombo a gente nunca esquece. Lembra quando seu primo torceu o pé porque você torceu o pé dele?

As festinhas de aniversário? Como esquecer? Aos 60 anos sua mãe ainda faz terapia e acorda à noite gritando. Enquanto você arrancava o embrulho dos presentes, sua mãe arrancava os cabelos para tirar as manchas deixadas nas cortinas. O bolo. As velinhas. A coleguinha que passou mal e quando sua mãe perguntou o que acontecia, ela disse:

-- Eu sinto um bolo queimando no estômago, tia.

E sua mãe: -- Querida, essa queimação logo passa.

E a coleguinha respondeu: -- Acho que não, tia, eu comi o bolo com a velinha acesa.

Foi a primeira vez que bombeiros apagaram velinhas de aniversário com um caminhão-pipa.

Infância... Lembra do seu cachorro, quando você deu banho nele com o laquê, aquele fixador de cabelo da sua mãe? Foi o primeiro cão punk do mundo, não mordia, espetava os outros, quem teve que tomar vacina contra raiva foi sua mãe.

E o canário belga que seu pai adorava? Você resolveu dar banho nele, deixar limpinho, fazer surpresa para o papai. Saiu tanta pena do canário que o ralo do chuveiro parecia uma peteca. Mesmo torcendo e secando bem o bichinho o canário ficou com frio e para deixá-lo bem quentinho, com a maior boa vontade, você colocou o ex-penadinho numa garrafa térmica. À noite foi devagarinho e, para não incomodar, passou o canário por baixo da porta do quarto dos seus pais, limpinho e quentinho. Que surpresa. Crendospadre! O canário sobreviveu, mas o velho tem dor no peito até hoje.

Crianças são artistas: pintam paredes, pintam a gente, pintam o 7 e as tintas que usam então...

Porém não há nada mais comovente para os pais que entrar no quarto dos seus rebentos, mesmo arrebentados e vê-los ali de olhinhos fechados, adormecidos na caminha ou bercinho. Depois de dezesseis horas, o que sobra de você se emociona. Infância lembra mertiolate ardido, assoprinhos carinhosos e beijinhos da mãe. Na infância beijo de mãe curava a dores da gente. Beijo que cura dor... Quem não tiver uma história de criança para contar ou lembrar neste dia que se lambuze na primeira panela. Que raspe o tacho.

Dia das crianças. Criaturas que nós fomos, mas ninguém acredita:

-- “Criança?! É você nessa foto? Não acredito! Nossa, mas você era tão diferente... Tinha cabelos, sua pele era lisinha, olha a cinturinha você tinha uma só! Mãos firmes, coluna reta, dentes na boca. Eu quase nem reconheço suas pernas sem as varizes!

-- Me dá logo essa foto.

Feliz dia das crianças!

Filme recomendado: apertem os cintos o dinheiro sumiu!

José Feliciano - Escritor e roteirista. Observador de moscas verdes. Médico por acidente.