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É a cara do pai...

26 de Janeiro de 2020 às 00:01

Crédito da foto: Stefan Rousseau / Arquivo Pool AFP (20/1/2020)

 

Leandro Karnal

Bentinho olhava atravessado. A cada sorriso do filho, duvidava de Capitu e buscava traços de Escobar no rebento que ele, D. Casmurro, deveria amar incondicionalmente como fruto legítimo e honrado. Restava a dúvida mais famosa da literatura brasileira. O gênio de Machado imaginou uma situação desconfortável e comum. O filho não é a cara do pai. Ezequiel traz na face a dúvida como uma assinatura.

Sempre reconforta a declaração solene da família na maternidade: “Ele tem o nariz do avô paterno e o olho do pai”. Pronto. Há efeito duplo: está atestada a ancestralidade pelo ramo masculino e salvaguarda-se a honra da mãe.

Há casos públicos nos quais a semelhança é quase um fenômeno. Penso no lindo casal formado pelo saudoso Paulo Goulart e por Nicette Bruno. Os três filhos (Beth, Bárbara e Paulo Goulart Filho) são de uma tal semelhança com os pais que nunca pensaríamos em olhares oblíquos e dissimulados. A bem da verdade, olhando as fotos da dupla, parecia mesmo que Nicette e Paulo também eram filhos do mesmo pai. Lembram o célebre quadro de Grant Wood, de 1930, em que um casal de fazendeiros levanta a hipótese de que nos assemelhamos por convivência (procure na internet: American Gothic). Casais longamente unidos ficam parecendo parentes de sangue mesmo.

O pai do lindo bebê Archie, príncipe Harry, acaba de impressionar a família real britânica com a disposição de levar vida independente. A peraltice dos ruivos! Ele nem completou 36 anos e já se acha independente! Coisas desta modernidade, reclama a avó, um carvalho que desafia os juncos oscilantes.

Harry e sua linda esposa Meghan (fará 39 anos neste ano) acham que já podem ter a chave de casa para chegar depois das 21h! Onde já se viu! O mundo está perdido! Bem, pelo menos está perdido há algumas gerações. O cabelo vermelho do príncipe pode ter raízes no século 16, com seus ancestrais distantes, Henrique VIII e Elizabeth I. Porém, fofocas fluindo, há hipóteses mais recentes para os genes. O tipo físico do príncipe apresenta traços inquietantes com um ex-amante da lady Di, o cavalariço James Lifford Hewitt. Algumas vozes perversas aventaram que o sangue do marido de Meghan pode fluir das estrebarias e não dos palácios. Maldade absoluta! Bem, o bebê é lindo, o que parece afastar o avô Charles da árvore genealógica.

Durante meu Ensino Médio, um pouco antes do fim da era Mesozoica, a professora de biologia (a notável Marlene Engelke) ensinava sobre genética e fazíamos estudos genealógicos para identificar de quem cada um herdara o olho claro, o daltonismo ou a curiosa heterocromia (olhos com cores diferentes) de uma colega. Lembro-me de algumas árvores com embaraços nos troncos e raízes, porque os problemas de genética não podiam ser resolvidos a não ser pela visita de cavalariços. Diplomática, a professora orientava sempre: “Há mutações”. Pronto! O jovem bastardo era alçado à posição de X-Men.

Temos, hoje, exames de DNA. Sei que há casos e casos, mas acho que pai é aquele que cria, ama, sustenta e vai a médicos e reuniões de escola. Edmund, filho ilegítimo de Gloucester (peça Rei Lear de Shakespeare), defende sua conhecida posição e alega que foi filho da paixão ardente. Edgar, o herdeiro oficial? Fora gerado em lençóis tediosos por cônjuges sonolentos (At least we bastards were conceived in a moment of passionate lust rather than in a dull, tired marriage bed, where half-sleeping parents monotonously churn out a bunch of sissy kids). Edmund tem mágoas que seriam resolvidas pela Constituição Brasileira de 1988: os filhos da paixão, os da estrebaria e os gerados em meio ao lusco-fusco são, todos, herdeiros legítimos. Talvez seja o motivo de não existirem mais Shakespeares no Brasil: a lei consagrou a isonomia e derrubou a tensão narrativa geradora das tragédias. Somos mais justos e... menos talentosos.

Em questões tão tensas e antigas, é prudente lançar mão de conselhos sábios das religiões. O tronco espiritual do Ocidente é o Judaísmo, origem das concepções iniciais cristãs e islâmicas Isaac era chamado de filho de Abraão, como Jacó era tomado pela linhagem paterna. O pai definia tudo. A árvore genealógica de Jesus, em Mateus, consagra a linhagem do pai, José. Eclode a tragédia da destruição do Segundo Templo, no ano 70 da era comum.

Romanos raivosos atacam a população de Jerusalém. O fenômeno de violências em massa contra mulheres de identidade judaica se repetiria nas Cruzadas medievais. Em sua ancestral sabedoria, o rabinato redefiniu: é a mãe que importa para definir se a pessoa é ou não pertencente à comunidade. Ventre judeu gera judeus. A mãe é a certeza. O pai? Sempre uma hipótese moral.

Assim, se você for à maternidade ver o filho de um amigo ou parente, tenha em mente que a vida dá duas certezas: todos temos mãe e todos morreremos. O resto? O importante é que o bebê tenha saúde. Boa semana a todos.

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