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Drummond, o avesso no mundo

28 de Fevereiro de 2020 às 00:01

João Alvarenga

O poeta, escritor e ensaísta Affonso Romano Sant’Anna produziu um dos mais profícuos ensaios sobre a obra completa do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, fruto de extensa pesquisa de seu mestrado que focou detalhes, até então, pouco observados pela crítica literária, a respeito da poética daquele que se tornou um dos principais autores do século 20. O resultado de tamanho esforço está consignado no livro “Drummond: o gouche no tempo”, (editora Record), trabalho de fôlego, de mais de trezentas páginas, que esmiúça a essência do complexo universo drummoniano.

Assim, é mister observar que essa extensa pesquisa se torna um instrumento necessário não só para os professores de literatura ou estudantes de Letras; mas, também, para aqueles que admiram Drummond na sua integralidade e desejam entender a grandiosidade de seus versos. Mais que isso, o contexto em que foram escritos, desde “Alguma poesia”, que inaugura sua produção, em 1930, com destaque para “Sentimento do mundo”, de 1940, e “A rosa do povo”, de 1945. Este último é considerado o enfoque mais engajado do poeta, que vivenciou duas guerras e foi testemunha do apogeu da “Era Vargas”.

Em seus versos, Drummond abordou a 2ª Guerra Mundial e, também, dialogou, ainda que discretamente, com o marxismo, como ideário de um novo tempo. No fundo, a tal rosa do povo é a esperança de liberdade que a sociedade nutre num tempo em que ideologias antagônicas se impunham de forma enfática. Porém, no dizer de Sant’Anna, o livro “Claro enigma” é mais emblemático, pois “ele se afirma através do que nega”. Assim, sobre os versos do itabirano, o estudioso faz um alerta: “Sua obra não é um bazar, onde os temas e assuntos se amontoam, como deixa transparecer a maioria dos seus críticos”.

Além desse alerta, Sant’Anna esclarece o sentido do termo “gauche”, de origem francesa, que significa, literalmente, algo avesso ou desencontrado no mundo. Essa palavra que aparece, pela primeira vez,no “Poema de sete faces”, marcaria para sempre a personalidade de um itabirano tímido, avesso aos holofotes e às entrevistas.

Todavia, no dizer de Sant’Anna, essa ideia de ser sentir fora do mundo era como Drummond se posicionava frente à realidade, para se sentir livre na hora de poetizar o tempo presente. Assim, nada lhe escapava ao olhar atento que, desde “Alguma poesia”, mostrou-se um observador irônico da vida em sociedade. Todavia, Sant’Anna salienta que o artista da palavra, naturalmente, sente-se desencontrado, porque tem uma visão inconformada diante da própria existência e de seus paradoxos.

No entanto, Sant’Anna, para fazer justiça, lembra que foi Mário de Andrade quem percebeu, também, o aspecto psicológico nos textos de Drummond. Em sua investigação, Sant’Anna destaca os principais temas que permeiam a escritura desse fabuloso poeta: ácida ironia, a família, reminiscências, terra natal, destruição, guerras, olhar provinciano, máquina do mundo, o desamor, a metalinguagem e “outros tantos que uma crítica quantitativamente apreciável anotara em mais de quinhentos artigos, ao longo dos quarenta anos de atividade do poeta”.

Além disso, o pesquisador salienta que, dentre os temas considerados importantes, a questão do tempo é uma dos assuntos que está muito presente em sua obra, cujos versos “E agora, José” são os mais conhecidos do grande público. Porém, longe do aspecto popularesco, Sant’Anna lembra que a obra de Drummond tem uma carga dramática intensa e que “o poeta se diversificou em egos auxiliares dentro da própria cena para conhecer os múltiplos aspectos de seu Ser”. Mas, é Drummond quem se revela: “meus versos são autobiográficos”. Assunto da próxima quinzena: A decupagem clássica.

João Alvarenga é professor de Língua Portuguesa, mestre em Comunicação e Cultura, produz e apresenta, com Alessandra Santos, o programa Nossa língua sem segredos, que vai ao ar pela Cruzeiro FM (92,3 MHz), às segundas-feiras, das 22h às 24h.