Domésticas

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Foto: Reprodução

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Há quatro filmes a que todo patrão e todo funcionário deveriam assistir. Seria uma espécie de reflexão em etapas. Primeira fase a descobrir: Nando Olivar e Fernando Meirelles dirigiram Domésticas (2000). Na obra, Roxane, Raimunda, Quitéria e outras personagens elaboram sua visão de mundo e análises sociológicas sem a presença de patrões. Extremamente cômica, a obra é reorientada ao final, quando uma doméstica real dá seu depoimento. Divertida e tocante, a obra faz pensar muito.

Segunda etapa: Que Horas Ela Volta? (2015). Anna Muylaert dirigiu a brilhante Regina Casé como a doce Val, uma empregada que desenvolve diferentes graus de consciência à medida que surgem questionamentos com a presença da sua filha na casa da benevolente e preconceituosa patroa. O que acontece quando uma trabalhadora que “sempre soube seu lugar” traz para o tribunal da sua consciência a filha que trabalha com ideal mais igualitário?

Terceira etapa e saindo da visão brasileira: Histórias Cruzadas (The Help, 2011, Tate Taylor). Os dramas sociais e econômicos das relações entre contratantes e contratadas são, aqui, misturados a questões dramáticas sobre racismo. Um grupo de empregadas negras e suas patroas brancas refazem, no microcosmo do lar, as tensões nacionais daquele momento.

Para completar seu minicurso sobre o tema, o denso filme mexicano Roma (Alfonso Cuarón, 2018). A película traz a questão indigenista em meio a agitações políticas do México, questões de reestruturação familiar e a ambiguidade paternal/autoritária das relações de trabalho doméstico. O filme tem muitas referências e precisa, quase, de uma legenda explicativa de coisas diversas. Como toda boa obra de arte, desperta perguntas fascinantes para quem se dispuser a ver com sinceridade.

Funcionárias em casa, as tradicionais “empregadas domésticas”, são um território rico para debates sociológicos e psicológicos. Um trabalhador do lar é um fenômeno que cruza Marx e Freud, luta de classes e tensões psicanalíticas. Em geral, falta profissionalismo dos dois lados. Foi o último setor a receber a integralidade da legislação trabalhista. É um universo ambíguo de intimidade, amor, ódio e dedicação. Talvez seja a releitura permanente de Casa-Grande & Senzala e de Sobrados e Mucambos, ambos do sociólogo Gilberto Freyre. Todos temos histórias ternas e trágicas para falar de quaisquer lados que a questão apresente.

O trabalho dentro da uma casa implica, quase de forma forçada, uma intimidade enorme. A empregada toca na sua cueca e na sua lingerie. Sua comida passa pela mão dela. Você está submetido a uma rotina na qual é impossível estabelecer uma linha clara de afastamento. A objetividade nunca foi a marca da relação trabalhista brasileira, porém, no quadro de funcionários de uma casa, tudo fica ainda mais nublado. Há dores intensas dos dois lados e raramente o trabalho é apenas um emprego. Você pode observá-la ou não; ela, certamente, perscruta cada gesto seu e da família. Ela sabe muito mais do que você imagina e você pode se orgulhar de muita proximidade até que entenda que pouco sabe.

Europeus e norte-americanos estranham a dependência brasileira de serviços de terceiros em casa. Nesses lugares, a experiência republicana e os direitos trabalhistas estão há mais tempo na mesa e custaram muito sangue, apenas isso. Não imaginemos que é porque são geneticamente melhores do que nós! Isso não existe. Fato é que a empregada fixa ou a faxineira são onipresentes no território nacional. Há quem idealize ou faça apologia do ponto de vista de um ou de outro lado da conturbada relação.

A realidade é complexa. Os direitos são muito maiores do que há duas gerações. Infelizmente, ainda existe um paternalismo condescendente que os filmes retratam e nossa experiência reforça. Se você contrata ou é contratado para esse trabalho, sabe que as concepções sociais e culturais, as hierarquias e os projetos econômicos podem ser debatidos na universidade, vociferados nas redes sociais e previstos em legislação: nada diminui o fato extraordinário do convívio de muitas visões de mundo e de projetos de vida dentro dos lares de classe média e alta da Terra de Santa Cruz.

Estaremos preparados, como patrões ou como empregados, para a profissionalização do setor? Acharemos um ponto de equilíbrio entre o servilismo desejado como regra no passado e a igualdade republicana do presente? Seremos a última geração que pensou na necessidade de alguém para limpar, lavar, cozinhar e passar para que eu possa tocar meu dia a dia?

Conseguiremos estabelecer regras claras sobre a família e suas necessidades? Como leremos o “discurso de servidão voluntária”, expressão de La Boétie para pensar nas origens do mando e da obediência? Daremos a resposta aristotélica, algo chocante hoje, de que a democracia e o exercício da filosofia implicam escravos? A automação de tudo eliminará o serviço doméstico como ocorre com tantas outras formas de trabalho? São perguntas complexas para responder, porém, bem antes de o futuro revelar suas possibilidades assombrosas, seria bom que as partes envolvidas sentassem para conversar algumas coisas. Ver esses filmes em conjunto pode ser um fascinante processo de descoberta para domésticas e patrões. É preciso ter esperança.

Leandro Karnal é articulista da Agência Estado.